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A tia
costumava dizer que ele era assim, meio avariado, desde pequenino, que trazia lá dentro, algum botão escangalhado. E
dizia-o com ar blasée enquanto distraía a vista cansada nas montras da Joframa,
na rua dos Fanqueiros, pejada de manequins amarelos e mortiços, aqui e ali
esfolados e com mossas na tinta. Era o tempo em que o universo era feito de legos, livros e coisas boas e em que todos queriam ser alguma coisa: polícia,
bombeiro ou astronauta. Ele não queria ser nada. Imaginava-se apenas uma
espécie de Vasco da Gama ou Sandokan a descobrir o remédio para tratar a doença
da mãe, o absurdo estéril dos achaques e
maleitas que a faziam sofrer de fraqueza e
vomitar entre a casa de banho e o quarto de janelas fechadas, no escuro,
a debitar pedidos e queixumes. Doía a cabeça, os rins, as costas, a barriga. É dos nervos dizia o médico É dor de alma diziam as vizinhas e ele ficava horas ,
parado, a olhar para o estuque encardido
onde um fiosinho de humidade deixara marcas desde o interruptor até ao
rodapé à procura, ali, de algum sinal da existência de Deus. A tia viera da
terra para Lisboa para dar uma ajudinha,
achava que ele não tinha tino, que lho levara algum personagem dos livros que
lia em demasia, quase tão mau como apanhar muito sol naquela moleirinha cheia de
sonhos, mas ele sabia que ela era
afiambrada à socapa pelo Arnaldo do terceiro andar, chauffeur de carro de
praça, Merecedes-Benz 200 D, arraçado de carro de combate , polido, lustroso,
porta estandarte do belenenses com
imagem fluorescente da nossa senhora no tabelier. Era nesses momentos que ele aproveitava para
ir à caixinha, por trás do jarrão chinês da dinastia Ming que a mãe comprara quando ainda tinha disposição e sorriso, ao aldrabão do Mota da casa de móveis em segunda mão que afiançava ser genuíno, que de qualidade e velharias percebia ele
e tirar umas moedas para ir à mercearia comprar pastilhas e recordar com a
Tininha as férias do verão anterior, em Santo André, com o avô a fazer vinho
americano às escondidas porque era proibido desde o tempo do Salazar, a barrar
manteiga nos dois lados das bolachas Maria porque era guloso e porque as lambia
até derreter por não ter dentes.O amor com interrupções, as brincadeiras, as
asneiras, muitas, mais que pedras no caminho de Pessoa. Esse Pessoa a
tornar-se calhau imenso, estigma melancólico a atravessar-se com pontualidade
arreliadora na alma lusa. As corridas para a aloja com cheiro a gasól, do motor de tirar água do poço,
porque ela tinha medo dos javalis, cobras e ratos do campo. Trocavam
carícias no meio das sacas de batatas e
a avó a espantá-los com as mãos ásperas, para ajudarem apanhar os marmelos que começavam a cair de maduros e
faziam estrondo ao esborrachar-se nos torrões duros de terra seca, a avó a gritar porque se esventravam e ficavam
sem serventia. O mesmo som que ouviria mais tarde, quando aquele alferes miliciano
que cumprira tropa no Uíge e que fora da
Securitas e depois entrara para um banco e tinha uma mulher hospedeira, muito bonita e, por sinal, muito simpáticos e se mandou da varanda
descascada de um sétimo andar em Odivelas e ele a ouvir a avó gritar que eles
se esventravam e ficavam sem serventia e
a perceber que a morte tinha cheiro e que no fim ficava um silêncio absoluto,
vereda estreita entre o pensamento e a fé, espécie de exílio onde o corpo
resgatava a memória e o amor, que se tornava mais forte não pelo espaço ocupado
no coração, mas pelo vazio que ficava quando partia…