Elementi pictorici |
O
mito do eterno retorno ou, simplesmente, um braço de ferro com as palavras. “A
história das velhas”, conversas cruzadas num café em final de tarde,
arrastava-se penosamente desde o verão passado por circunstâncias várias.
Momentos houve em que o autor, proto-assassino confesso, esteve para matar o
texto. Afinal, venceram as palavras… et voilá!
-
Ela não gosta de peixe espada, nem de cabidela, nem de polvo, nem assim… É
esquisita! Tenho que perguntar: O que é
que queres? Ela nem olha para mim…
E
a conversa a estender-se, mole e azeda, a destilar fel, culpas e barbaridades
entre as duas amigas já entradas na idade, fustigando nora, primos, vizinhos,
azares da vida, o Papa, o Obama, e o buraco do ozono numa escala ascendente e secular enraizada na genealogia do D. Afonso Henriques. Na montra do
café erguiam-se, alinhados, quatro melões brancos empinados dentro de
taças de mousse de chocolate, garrafas de Porto, latas de Guaraná, uma águia do
Benfica em loiça, uma fina camada de pó e duas moscas tombadas junto ao
caixilho. Encostado ao balcão, um
brasileiro de sotaque cerrado do sertão descompondo os moleque
do Glorioso, um mecânico a insistir nas qualidades nutritivas das iscas com batatas, um pequeno rádio de antena
espetada a apanhar frequências no Éter, debitando casos de polícia, escândalos
e musiquinha de elevador.
-
Quer mais uma torrada? Coma! Se não, dá-lhe a fraqueza! E cházinho? Quer mais
chá? Beba para não empanturrar. – E eu é que sei como vou andando. Um
mal-estar. Pior do que quando estive doente. Logo vou comer arroz de grelos - mas pouquinho - com bogas fritas. Vou tomar o
medicamento. Como um doce e é assim… ver novela, mas pouco que a luz está cara.
Nem o molho posso comer. Vou tomar as carteirinhas de sais meia hora antes de
deitar, mas não adianta! Fico enfartada na mesma!
E
a
mulher zunia sem interrupção ou obstáculos atropelando na acidez das palavras,
ora o governo, ora os lençóis
de quinze euros que a nora comprara, tão
bons que
nem engelham, numa
luta desigual entre as mandíbulas e a torrada triturada ruidosamente. A
amiga meneava a cabeça, à sua frente,
com interesse distraído de beiços afogados no chá a diluir-se na memória do
marido, manobrador de máquinas da construção civil que a convidara numa noite
aziaga para uma casa de petiscos,
caracóis, mines e sandes de torresmos. E ela, que não partilhava de particular
simpatia pelos gastrópodes, passara a noite a tricotar uma
camisola para o neto, ingrato e mal-educado que nem a quisera
provar. O marido a
engasgar-se com um osso de
cabeça de porco do torresmo mal prensado e ela a tricotar o mundo na tasca, na
ambulância, nos corredores do hospital a aguardar o resultado do exame que
acabara por metamorfosear-se em autópsia.
A
outra, em
velocidade de cruzeiro, invectivava,
ainda, a nora. - Sempre
toda arranjada, sempre no cabeleireiro, sempre no cabeleireiro. São ricos! Mas
eu já vi, uma vez que fomos ao Braz & Braz, que o cartão não deu…. Está avariado! Tenho que falar com o banco
para trocá-lo… Avaria… Avaria tem ela na conta arrombada no banco. Tem
memória curta que nunca me pagou!.. A cínica! Não têm noção dos dias que aí
vêm.
Às
vezes balançava na dúvida entre a existência de Deus e o seu grau de miopia,
pois que se Ele estava em toda a parte por onde andaria que não o via fazer
nada por si, conformando-se envergonhadamente com a desgraça alheia, da vizinha
de baixo por exemplo, que se separara do marido, um burgesso
relapso que
punha as meias em cima da mesa de cabeceira, não ajudava em casa, não ia
às compras e ainda lhe ia ao porta-moedas, descaradamente instalado no
acto de se furtar ao sustento da casa e a viver,
airosamente, à sombra dela. E a prima, a prima que Deus
tinha, coitada, que fora operada primeiro a
um peito, depois a outro e uns meses mais tarde, quando insistia para tomar o
remédio e as carteirinhas de sais para ficar melhor ela lhe murmurara, numas
sílabas inaudíveis, qualquer coisa sobre uma náusea e um quisto escondido por
trás do cólon, sem indícios de plaquetas
baixas nem nada, acabando por finar-se a meio de um serão televisivo.
Ao
seu lado, um homem novo, ouvinte acidental da conversa, viu as
horas, deixou umas moedas para pagar o café e lançou um olhar lá para fora,
através da montra por onde, àquela hora, se divisava ainda, sem favor, uma
nesga de céu. Levantou-se com a
vontade expressa de conquistar Lisboa aos Mouros, com a certeza firme de que a vida era
algo mais que um lugar comum a
esgueirar-se, de
fininho, entre um intervalo da novela e um
anúncio do Fairy e que a realidade era, “Tão somente”, um olhar sereno a
entornar azul sobre as coisas…
Bom texto... repleto de ritmo, humor corrosivo terminando numa mensagem profunda, de forma tal subtil que contrasta com o desenvolvimento de toda a história, mas só o Bento para unir as duas e a transformar em mais uma narrativa impressionante!
ResponderEliminarHorus