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"Chiado molhado" - Fotografia de Isabel Garcia Pereira |
Às vezes trazia o
passado ao colo, porto seguro onde se refugiava amiúde, a declinar escolhas e
consequências, presa fácil da infância, dos natais a morrer de tédio, sempre
passados na terra, a aborrecê-lo
sobremaneira por não poder ver o Espaço
1999, das velhas da aldeia, de buço rijo a picar-lhe a cara, à chegada, com
os beijinhos e a cantilena pronta e rotineira de que já estava um home!, das
moedinhas de vinte e cinco tostões e dos biscoitos rançosos guardados em
frascos de Tofina desde a consoada
anterior, que insistiam em lhe oferecer, do sacrifício supremo de ter que
assistir às missas só atenuado pela perspectiva de se sentar ao lado das
raparigas quando o pároco, a ler as escrituras de voz sibilante lhes ordenava
que se cumprimentassem na paz de Cristo e ele, finório, a ajeitar os
beiços para o ósculo oportunista e elas, com pudor exagerado, a estenderem-lhe
a mão com o olhar cabisbaixo, das visitas de estudo da escola, das excursões ao
Mosteiro da Batalha, do arco em ogiva, do postalinho com a imagem do túmulo do
soldado desconhecido, da florzinha para a mãe e outra para a tia, ainda a viver
lá em casa, a tomar-se de amores por um mancebo bem apessoado a cumprir tropa
em Moçambique e ela que queimava pestanas à noite e massacrava as falangetas, a
tirar a quarta classe de adultos e o curso de dactilografia e estenografia a
escrever cartas comerciais em teclado HCESAR,
a casar por procuração e apanhar boleia no Infante
Dom Henrique para Lourenço Marques, para trabalhar nos escritórios da Lusalite com um patrão que era muito boa pessoa não desfazendo…
No verão, trazia-lhe
cajus, roupas e lembranças que davam nos aviões da TAP. E ele guardava com zelo
embevecido os tarecos, cromos, lembranças, réstias de sol, aroma de noites
quentes, dramas, gargalhadas, palavras… um pouco de mim, de ti, do
pretérito imperfeito em que éramos nós…detalhes, marcas, cicatrizes, sulcos na
pele em forma de memória, com a mágoa a fazer de conta que se ia embora deixando
espaço aberto para as coisas doces, como quando pedia ao vento para não fazer barulho para não
acordar os castanheiros que dormiam de pé, tranquilos, nas terras frente ao
quarto onde a mãe descansava da dor de cabeça. Torpor de que só despertava
quando a menina Isabelinha da contabilidade, ao almoço, falava do seu problema
do maxilar com pouca massa óssea para suportar implantes e da colega de secretária,
indiferente, passando creme pelas mãos queixando-se do marido que ressonava que
parecia um motor de motocicleta a quatro tempos…
A chuva a cair,
miudinha, na noite baça e ele a regressar à realidade… ou a esvair-se no sonho,
até ao ponto em que a felicidade se tornava no instante em que o corpo dela e a
alma dele ficavam do mesmo tamanho percebendo, então, que o amor era uma
coincidência no caminho, entre dois, a dissimular
a liberdade ou a falta dela…