Mostrar mensagens com a etiqueta banco. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta banco. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

E A VIDA CONTINUOU




Chegou-me, hoje, por correio "E a Vida Continuou - Incursões na Loucura de uma Existência Normal" de Mário Jorge Almeida e já o li. Para quem pensar que os bancos são instituições de gente séria a gerir fortunas no conforto dos gabinetes, tem que ler este livro para perceber como um "Danny Devito" lê enciclopédias na casa de banho para decorar palavras caras para as reuniões que dirige, ou um "esparguete" que arranjou emprego à conta do irmão e conseguiu rebentar com uma corretora e despedir quase um terço dos funcionários de um banco. Pelo meio há sexo, muito sexo, má gestão e picardias. Só assim se percebe a hecatombe do panorama financeiro português. Uma viagem pela memória, pela adolescência, pela banca dos anos oitenta até aos nossos dias, Moçambique e a descolonização, num tom irónico, por vezes jocoso, um retrato da mediocridade que grassa nalguns setores, resultado de uma vontade e de um novo recomeçar...

"Não obstante ser clara a noção de valores e decência ou ausência total deles, que podemos intuir relativamente à atitude de uma empresa que durante a Quadra Natalícia decide despedir coletivamente perto de 150 empregados, alguns dos quais, (...) com mais de 50 anos de idade, (...) a verdade é que sem esta nova situação em que me encontro, escrever este livro teria permanecido no mesmo estado de projeto eternamente adiado em que se encontrava desde há quase trinta anos."


terça-feira, 28 de maio de 2013

PENSO, LOGO EXÍLIO

Imagem retirada da net
A tia costumava dizer que ele era assim, meio avariado, desde pequenino, que trazia lá dentro, algum botão escangalhado. E dizia-o com ar blasée enquanto distraía a vista cansada nas montras da Joframa, na rua dos Fanqueiros, pejada de manequins amarelos e mortiços, aqui e ali esfolados e com mossas na tinta. Era o tempo em que o universo era feito de legos, livros e coisas boas e em que todos queriam ser alguma coisa: polícia, bombeiro ou astronauta. Ele não queria ser nada. Imaginava-se apenas uma espécie de Vasco da Gama ou Sandokan a descobrir o remédio para tratar a doença da mãe, o absurdo estéril dos  achaques e maleitas que a faziam sofrer de fraqueza e   vomitar entre a casa de banho e o quarto de janelas fechadas, no escuro, a debitar pedidos e queixumes. Doía a cabeça, os rins, as costas, a barriga. É dos nervos dizia o médico É dor de alma  diziam as vizinhas e ele ficava horas , parado, a olhar para o estuque encardido  onde um fiosinho de humidade deixara marcas desde o interruptor até ao rodapé à procura, ali, de algum sinal da existência de Deus. A tia viera da terra para Lisboa  para dar uma ajudinha, achava que ele não tinha tino, que lho levara algum personagem dos livros que lia em demasia, quase tão mau como apanhar muito sol naquela moleirinha cheia de sonhos, mas ele sabia que  ela era afiambrada à socapa pelo Arnaldo do terceiro andar, chauffeur de carro de praça, Merecedes-Benz 200 D, arraçado de carro de combate , polido, lustroso, porta estandarte do belenenses  com imagem fluorescente da nossa senhora no tabelier.  Era nesses momentos que ele aproveitava para ir à caixinha, por trás do jarrão chinês da dinastia Ming que a mãe comprara quando ainda tinha disposição e sorriso, ao aldrabão do Mota da casa de móveis em segunda mão  que afiançava ser genuíno, que de qualidade e velharias percebia ele e tirar umas moedas para ir à mercearia comprar pastilhas e recordar com a Tininha as férias do verão anterior, em Santo André, com o avô a fazer vinho americano às escondidas porque era proibido desde o tempo do Salazar, a barrar manteiga nos dois lados das bolachas Maria porque era guloso e porque as lambia até derreter por não ter dentes.O amor com interrupções, as brincadeiras, as asneiras, muitas, mais que pedras no caminho de Pessoa. Esse Pessoa a tornar-se calhau imenso, estigma melancólico a atravessar-se com pontualidade arreliadora na alma lusa. As corridas para a aloja com cheiro a gasól, do motor de tirar água do poço, porque ela tinha medo dos javalis, cobras e ratos do campo. Trocavam carícias no meio das sacas de batatas  e a avó a espantá-los  com as mãos   ásperas, para ajudarem apanhar os marmelos que começavam a cair de maduros e faziam estrondo ao esborrachar-se nos torrões duros de terra seca,   a avó a gritar porque se esventravam e ficavam sem serventia. O mesmo som que ouviria mais tarde, quando aquele  alferes miliciano que cumprira tropa no Uíge  e que fora da Securitas e depois entrara para um banco e tinha uma mulher  hospedeira, muito bonita e, por sinal, muito simpáticos e se mandou da varanda descascada de um sétimo andar em Odivelas e ele a ouvir a avó gritar que eles se esventravam e ficavam sem serventia e a perceber que a morte tinha cheiro e que no fim ficava um silêncio absoluto, vereda estreita entre o pensamento e a fé, espécie de exílio onde o corpo resgatava a memória e o amor, que se tornava mais forte não pelo espaço ocupado no coração, mas pelo vazio que ficava quando partia…