quarta-feira, 27 de junho de 2012

PERSPECTIVAS II




A NOITE DE SEXTA-FEIRA
Guilherme batia aos pontos Fernão de Magalhães... Após duas viagens de circum-navegação pela cinco de Outubro e vinte minutos de seca esfumaçados sem interrupção... o inquilino do rés-do-chão há muito que dava mostras de vivacidade e impaciência... e ela nem era um "Brastemp"... com menos trabalho e mais cinquenta euros já teria dado o pidafo nas calmas... dito e feito! Pegou no carro e dirigiu-se estrada fora para o bas-fond da cidade...Estacionou perto do Camões e desceu, a pé, a rua do Alecrim.. à porta dos bares. naquele imenso manual de biologia, as distintas classes da fauna exibiam-se em portes lúbricos e miseráveis, entre as meias vermelhas esburacadas e as velhas exibindo sorrisos de onde os dentes, há muito, tinham inciado uma fuga prisional em larga escala, uma houve que lhe despertara a atenção... Ucraniana de gema... era ali que se refastelaria nas delícias pantagruélicas do sexo fácil... lá dentro, contudo, após meia dúzia de shots a vontade esmorecera, o inquilino do rés-do-chão dera às de vila diogo, em seu lugar, o enfado ocupara o trono e a necessidade de recuperar o cansaço de uma noite perdida impulsionaram-no a sair... Além do grizo, a chuva miúdinha acompanhava agora como chorus de tragédia grega, então apercebeu-se dos dois cofres fortes com abertura retardada que vinham no seu encalço... sabia ao que vinham e estugou o passo tentando iniciar a corrida... toldado pelo alcool e pelo cansaço, o chumbo preso às canelas não o deixava correr, olhou para trás e via com pânico, as figuras cada vez mais próximas, esgotou todas as energias na corrida, amaldiçoava agora as baldas às aulas de ginástica no liceu... Estavam cada vez mais próximo, sentia-lhes o trote e a respiração...
- Anda cá melro! - foi a última coisa que ouviu antes da pancada seca na cabeça...


Helena tinha, nitidamente , gozado com aquele parvalhão... ele reentrara duas vezes no bar acenando ostensivamente até dar nas vistas, desmanchara-se a rir...fora ali pôr um ponto final num parágrafo obscuro da sua vida. Ali conhecera Ricardo ali faria a catárse da relação...iniciara uma página, lera o capítulo e chegara ao fim numa leitura oblíqua e sem interesse...àmanhã era outro dia...um dia novo com tarefas a cumprir...

NO SÁBADO DE MANHÃ

Guilherme acordara num repente... o corpo estranhamente molhado e enregelado até ao tutano, a custo erguera-se e olhara em redor... não queria acreditar... na linha do horizonte os seus olhos turvos divisavam o topo das torres do Restelo...após uns segundos de estupefacção atreveu-se a olhar para o próprio corpo...sem sapatos, só com camisola interior e calças... agora que o torpor do alcool se dissipara começara a somar dois e dois... assaltaram-no e deixaram-no descalço em pleno Monsanto...decididamente, aquela que seria a noite da sorte grande tornara-se o dia em que tirara a bola preta do saco... "Rápido! não há tempo a perder..." se se apressar ainda chega a benfica antes da mulher...a explicação para o roubo dos cartões de crédito fica para depois... 


Helena acordara serena, a tormenta de lágrimas dera lugar a uma calma sem precedentes... tinha uma tarefa a cumprir... deitar fora os bibelots, os postais, as fotos, loiças, lençóis tudo, tudo, tudo, tudo o que tinha partilhado com Ricardo... o novo ciclo inicava-se hoje...dele... só ficaria com o essencial... o seu olhar poisou sobre o lavatório onde se encontrava o teste com marca positiva... um sorriso amplo iluminou-lhe o rosto até à alma...


AINDA A SEXTA-FEIRA À NOITE

Ricardo deambulava pelas ruas... tinha feito merda... e da grossa! pusera-se a mandar bolas para o pinhal e andava agora, de cócoras, por entre silvas e estevas peganhentas a apanhá-las...aquilo que tanto criticara nos amigos fôra exactamente fotocopiar...sem tirar nem pôr... A vida organizadinha, os filhos... deixara-se seduzir estupidamente... uma troca de olhares, uma ar moreno a brincar com os caracóis e... meia hora depois já rebolavam no motel da Praça da Alegria num sucessão de orgasmos múltiplos... a pila não mete férias nem goza dias santos ou feriados...nem a educação humanista dos pais tinha evitado o desastre... a mulher descobrira.. "porta da casa é serventia da rua"... por entre os carros estacionados, as imagens sucediam-se no seu cérebro...tudo o que tinha perdido...e nem sequer ficara com Helena... o fósforo da luxúria apagara-se à menor rajada de vento... afloravam-lhe de novo as imagens da sua infância... enquanto garoto... as brincadeiras de bicicleta no parque, as fisgadas aos pardais... sem se dar conta viera dar àquela rua... dirigiu-se para o prédio...tinha a chave da entrada... subiu as escadas e bateu à porta... Alguns segundos depois, timidamente, do outro lado da porta:
- Quem é?
- Sou eu... respondeu Ricardo num silvo...
À porta assomou a mãe...apreensiva estranhando a sua presença àquela hora...
- Aconteceu alguma coisa?
- Não mãe...tá tudo bem...
Entrou na sala... o cordão umbilical é apenas um pedaço de ráfia ensanguentada... o verdadeiro cordão nunca se rompe... e então, não retendo uma lágrima teimosa, aninhou-se no seu colo como nos tempos de garoto... e sonhou com a bicicleta, com as fisgas e os pardais...numa época em que o verbo ainda não tinha conjugação de pessoa, modo ou tempo...

PERSPECTIVAS I


A PERSPECTIVA DELE:

O bar estava compostinho, ambiente cosy , espaço predilecto de trintões e quarentões, empregados discretos e solícitos. Guilherme escolhera uma mesa num canto, de frente para a entrada, o local proporcionava-lhe visão privilegiada sobre toda a sala. Noite de sexta-feira, a mulher fora em Jornada de trabalho da junta de accionistas da empresa, esperava encontrar ali um consolo, uma companhia para os lençóis da luxúria e acabar a noite numa ginástica de cambalhotas intermináveis. Rolando o copo de Gin tónico entre as mãos, do alto dos seus metro e oitenta de Burberry's casual, exibia uma pretensa solidez financeira como isco para o seu charme movido a Old Spice…A fome começava a apertar, o tempo era escasso, a mulher regressaria sábado no final do almoço, a conquista tinha que ser rápida e fulminante… deteve o seu olhar libidinoso e felino de gato manhoso a miar em viela escura, na figura feminina no canto diametralmente oposto ao seu. Mulher, na casa dos trinta, bonita, só frente a um copo… fruta da época pronta a colher…” Boa como o milho toda produzida, boa todos os dias, sozinha... hum… emancipadas emancipadas, mas depois vêm em busca de companhia… deve trabalhar num escritório… casa alugada em conjunto com uma amiga…muito sucesso no trabalho, mas homem nicles…não faz mal…Liedson resolve…” Guilherme levantou ligeiramente o copo numa pose estudada e balofa acompanhada dum aceno de cabeça…a figura feminina correspondeu e exibiu um meio sorriso…Guilherme não mais tirou os olhos da presa…de vez em quando ia vendo a reacção dos presentes, gostava de ser discreto, não dar nas vistas, não fosse outro mais afoito abocanhar-lhe o naco…à medida que a excitação em forma de inchaço ia aumentando, a impaciência ia tomando conta dele…Terrível! Agora que tinha deparado com uma gaja boa…sentia-se desconfortável na cadeira, menino mimado exigindo o brinquedo de imediato, os olhares e os gestos apontando para a porta iam aumentando de intensidade… ela pareceu esboçar um aceno de cabeça enquanto olhava em redor… - Perfeito! - divagou Guilherme…a noite está feita…é melhor não dar nas vistas espero à porta do bar…espero que ela saia rápido…lá fora está um vento e um grizo do caraças…

A PERSPECTIVA DELA:



Helena tinha escolhido uma mesa no canto do bar…não era intenção sua afogar mágoas num copo de Wisky... lágrimas… tinha derramado calçadas em dia de chuva…apenas um ponto de ordem á mesa da paixão…fora ali que conhecera Ricardo, sim era casado, sim…o coração racional de mãe galinha tinha-lhe dito: “ele nunca vai deixar a mulher, são muitos anos.” Pois sim, mas aquele olhar, aquele humor, aquela maneira terna e forte de tocar , aquele ar de menino/homem faziam-na sentir uma mulher especial, faziam-na sentir: a mulher!...dez anos mais velho, colega de trabalho, insatisfeito com o casamento que há muito se tornara campo de batalha verbal por qualquer palha ou erva daninha…aquele olhar era o olhar de um homem apaixonado,,. a navegar para o mesmo rumo, juntos, segurando o leme do barco que pretendiam levar para bom porto, de preferência, seguro e distante… Não lamentava, apenas dava como perdidas as horas de entrega total, o entusiasmo na busca de casa para ambos, a compra de acessórios e bibelots para a nova casa…É Ricardo... uma mulher quando se entrega é contra tudo e contra todos… acredita no olhar, nos gestos e nas palavras…”precisavas de mais tempo para lhe contar”… dei te minutos, precisavas de “escolher o melhor momento”... e eu somei mais uns ponteiros no mostrador de um relógio que teimava em trabalhar…”Amo-te muito” foi frase que vomitavas na constância dos ritmos frenéticos com que nos amávamos no patamar entre a Contabilidade e a Informática, no final apenas querias saciar a fome em várias posições…ao menor sinal de projecto em comum, de vida única preferiste voltar para o comodismo da camisa engomada apesar do cheiro a fritos e dos rolos no cabelo… pois que tenhas saciado a pança... que te faça bom proveito ou diarreia descomunal… para o caso, pouco me interessa o teu desarranjo intestinal... és tu que perdes mais a desgraçada que contigo vai coabitar até que a morte vos separe… não percebes pois não? Uma mulher quando ama entrega-se sem receio do futuro ou das vozes dissonantes…o homem corre a abrigar-se na toca, por mais funda ou fria que seja, ao menor sinal de rumor negativo…o que me dói não é a solidão sabes…o que me dói é que pensava seres a minha cara metade e, afinal revelaste ser a outra face de uma moeda sem valor na bolsa da vida…que é isto? Era o que me faltava aquele parvalhão a olhar para mim…não pode uma gaja estar a beber um copo sozinha…que..."ou quer encosto ou é vaca a matar cabritos". E ele insiste… agora não pára de acenar, deves pensar que és o Brad Pitt da Madragoa. Pensam que basta um palminho de cara para nos levar à certa… levantou-se… uff… vai-se embora…vou acabar a bebida... só preciso de um abraço forte, terno e um aconchego no casaco para me tapar os ombros… lá fora, o frio, em rajadas finas, corta-nos a alma em pedaços…

(continua)

ENTREVISTA COM RITA FERRO



Estávamos em 1991, quase, quase… a terminar a faculdade quando veio parar, às  minhas mãos,  uma edição  do Círculo de Leitores de O Vento e a Lua… Tinha um teste de Latim na manhã seguinte, cadeira que trazia em atraso desde o segundo ano. Para bem dos meus pecados não resisti a folheá-lo . Duzentas e cinquenta e três páginas, das quais, li sôfregamente cento e oitenta e quatro. Deitei-me às quatro da manhã, fui fazer o teste às nove e, mal saí da sala, devorei as restantes até ao fim. A partir daí fui sempre acompanhando a sua escrita, rendido, a meio caminho entre o fascínio e a devoção. A sua escrita, solta, mordaz e irreverente não deixa margem de manobra à indiferença. Recentemente encontrei-a no seu blog Acto Falhado onde mantém uma tertúlia permanente sobre o nosso quotidiano. Uma razão a acrescer a tantas outras para não lhe perder o rasto. À pequena biografia retirada da net, resta-nos apenas deixar as perguntas a que Rita Ferro amavelmente acedeu a responder e dizer que, naquela manhã, acabei por conseguir passar a Latim…
Rita Ferro nasceu em Lisboa em 1955.
Estudou Design e Marketing, exercendo funções de direcção e consultoria em diversas empresas, na área da publicidade. Foi professora no IADE e colabora regularmente na imprensa, rádio e televisão.
Iniciou-se na escrita em 1990 com o romance O Nó na Garganta, arriscando um novo tipo de escrita feminina – sensível, intimista e geracional – que, tendo obtido um estrondoso sucesso e revolucionando o mercado literário português, conheceu inúmeros seguidores. Hoje, tendo já transcendido as questões femininas, ou não se esgotando nelas, distingue-se por uma técnica de narração mordaz e cativante, de grande versatilidade, tanto no épico urbano de Os Filhos da Mãe como no realismo fantástico de O Vento na Lua.

Entrevista Luís Bento
Bento-vai-para-dentro
14/2/2010 


1- “(…) movida por uma curiosidade insaciável, Pompeia encetava então um fantástico percurso de nómada, cruzando o seu destino com múltiplas personagens (…) o velho irlandês (…) que procurava saciar com bolos a sua fome de afecto”

Extrapolando, poderemos afirmar com segurança ser esta a função do autor? Encetar um percurso nómada por entre palavras e personagens saciando afectos à medida dos parágrafos?

(risos) A pergunta é difícil, sabe? É como pedir à centopeia para explicar como se move – preocupada, troca os movimentos e cai. Não sei, Luís. Não sei mesmo desmontar o processo. Sei que há dois tipos de escritores: os que fazem esqueleto prévio, desenhando minuciosamente as personagens e a história, e outros, como eu, que se sentam, pousam os dedos no teclado e se limitam a seguir o som da flauta. Mas o termo nómada ajusta-se a mim: sou um ser errático, na vida e nos livros, e aventuro-me sempre por caminhos que não conheço, ou seja, não me afeiçoo a nada no livro, estou sempre disposta a abandonar um caminho e a tomar um atalho para agarrar uma ideia que me chegou à cabeça e me empurrou violentamente noutra direcção, como num ciclone. Por vezes, chego ao fim do livro sem saber como terminá-lo, mas a resposta vem sempre: acordada ou a dormir. Quanto a saciar-me não é exactamente o termo. Vou puxando um cordel que puxa as memórias, as quais, por sua vez, puxam as emoções. Mas é um processo frio, desapiedado, cruel: olho as palavras que escrevo sem o menor derriço. Quase como um aluno com um atraso mental que quer passar de exame e eu estou ali, pronta a chumbá-lo, sem coração. De resto, é como quem toca de ouvido.

2 – Em, “O vento e a lua” a descrição brutal do ambiente de miséria em que Pompeia é gerada contrasta largamente, com a mestria de uma narrativa que nos conduz ora com amargura, ora com doçura e suavidade permitindo-nos levar para uma multiplicidade de escritas, gestos e sons, muito para além das imagens e cânones convencionais. Seguiu alguma das “receitas” sobre a arte da narrativa ou, pelo contrário, pretendeu fazer uma ruptura e seguir um novo caminho na descoberta e exposição do corpus literário?

Não, Luís, lembro-me de ter fixado apenas dois conselhos dos meus: a minha avó poetisa disse-me «a simplicidade resulta» e o meu pai escritor «escreve o livro até ao fim e depois deita fora metade». Não sei se os segui, porque sou rebelde a seguir conselhos, ou melhor, não é rebeldia é não poder ser se não eu. Nem na vida peço conselhos, quase nunca peço conselhos. Aproveito os meus recursos naturais, sigo o instinto. Não sei se é mau se bom, mas é como lhe digo.

3 – “ O vocabulário, grande recurso da cultura, é o inimigo do pensamento. Quanto mais aumenta mais ele se vê embaraçado – embaraçado por móveis pesados e fixos, por corpos mortos – e privado do seu espaço” (Jean Dubuffet) Concorda com esta afirmação? O Excesso verborreico conduz à atrofia do pensamento cabendo ao autor a domesticação das palavras?

Hoje em dia, sim. No livro que escrevo neste momento, e é biográfico, o preciosismo lexical deixou de me preocupar e a despedida fez-se sem lágrimas (risos) E penso que sim, que foi uma evolução. Um pouco como os escritores que têm de saber desenhar um corpo humano para se permitirem a fazer um risco numa tela em branco. Já superei essa prova, sinto isso. Repare, só agora me apercebi desta mudança, evolui-se sem se dar por isso e sem sequer apascentarmos esse sonho, sem sequer ser um sonho – é um estado a que se chega, um novo nível. O vocabulário não me interessa tanto, procuro agora formas mais enxutas de falar para que a narrativa sobressaia mais do que o estilo. Quanto ao excesso, penso que não conduz à atrofia do pensamento, mas distrai o leitor do recado que se quer passar. Tornei-me muito mais económica no estilo, muito mais, e espero que isso obedeça a uma maior maturidade e que essa maturidade se transcreva no livro. A ver vamos, é cedo para falar.

4 – “ Sexo na Desportiva “é uma recolha das suas criações de maior êxito em A Bola e no Correio da Manhã, escritas entre 2005 e 2006, juntamente com alguns inéditos.São textos sobre encontros e desencontros amorosos, onde não escapa o sexo. E o seu leitor? Não escapa a quê?

O meu leitor, o leitor daquele livro, não escapa a rir-se se tiver o mínimo de sentido de humor. São micro-histórias com piada, cada uma sobre um desporto diferente, parte delas ousadas. Não me censurei nos temas, mas tive cuidado em preservar o bom gosto. Escrever sobre sexo estabelece esse desafio e permite esse exercício.

5- Uma questão assassina: Será o famoso bloqueio de escritor o tal… “Grau zero da escrita” ?

Não, e ainda bem que pergunta. O bloqueio sucede tanto aos que estão no grau máximo como no mínimo, indiferenciadamente. A mim, esse tipo de apagão de ideias nunca ocorreu. Mas tenho outro tipo de bloqueio que é igualmente exasperante: a falta de vontade. Nunca ninguém fala disto e acontece muito aos artistas. Há livros que não querem ser escritos, o meu pai vivia a contrariar os dele. Anunciou uma trilogia cujo nome não interessa agora, mas só conseguiu entregar os dois primeiros volumes. Lutou com aquele bloqueio anos e morreu sem conseguir terminá-lo. Às vezes há uma recusa interior muito funda que não se compadece com nada, nem com a necessidade económica nem com as exigências contratuais. Uma musa caprichosa e malcriada que o artista tem de aturar. Os outros chamam-lhe preguiça, mas não é. Funciona como um travão: «poderia escrever, mas não sinto vontade.» É tramado. (risos)


Luis Bento
Domingo, 13 de Fevereiro de 2011

terça-feira, 26 de junho de 2012

O CHEIRO DA CHUVA


Na sua pressa, o mundo virara-lhe costas e não lhe dera tempo de agarrar o sonho. Ao certo não sabia em que ponto se perdera na angústia e descambara na resignação. Por isso, vivia a vida imaginando-a, gastando horas em recordações e leituras. Alheia à mulher sentada a seu lado que, de sorriso escancarado até ao esófago debitava decibéis de desinteria verbal, entre a pedra mármore da cozinha e a prima, tontinha, internada no Júlio de Matos que ficara bem nas fotografias por causa dos oito megapixels da fabulosa máquina, oscilava entre a observação do espécimen a quem a vida reservara metade de coisa nenhuma, o caderno aberto diante de si e o legítimo saborear do café anestesiado com duas grossas colheradas de açúcar.

Algures entre o cheiro da chuva a cair na terra húmida e a menina desenhando corações com o indicador direito sobre o bafo colado na vidraça, as recordações e as linhas tomavam forma nas histórias do António Roscas que torneara a alcunha na fábrica de porcas e parafusos falida até à medula, no Manel que andava lá fora a lutar pela vida ou na mãe que, de ouvido sintonizado na rádio em frequência modelada de dor , enviava a proverbial notinha de vinte escudos no cabograma acabando por arrastar os joelhos rasgados, em Fátima, pelo regresso do irmão de África que perdera uma perna e deixara lá a alma inteira. O que mais guardava de precioso era a imagem do outono a bater à porta, as camisolas de gola alta a picar no pescoço, a avó com as mãos ásperas numa carícia dengosa, o peixe frito a pingar óleo na toalha em noite de sexta- feira santa para não cometer pecado, os reis e rios de Portugal decorados na ponta da língua e o cheiro da chuva. A memória era um fio condutor despojado de vontades, em corrente contínua, onde, pelo meio, sobrevinham as mágoas. Tinha muitas, mais que pedras no caminho e nem castelo ou muralha ou verso do Pessoa lhe apagava o sorriso, para além de que gostava de linhas escorreitas, palavras doces e chocolate amargo. Escrever não era mais que ler parágrafos alinhavados pelo tempo e, se este não era mais que uma sucessão vertiginosa de coisas por fazer que lhe desarrumava a vida, formatada para aceitar o infortúnio com naturalidade, às vezes era na doçura da palavra e no travo amargo do chocolate, arrastados pela memória, que fazia um intervalo, percebendo então que assim, o mundo andava bem mais devagar…

ENTREVISTA COM LUÍS SEPÚLVEDA

Uma vez falaram-me no "Velho que lia Romances de Amor", comprei-o... e, de uma assentada, li todos os seus romances. A capacidade de efabulação, as descrições, as personagens, os ambientes são reveladores de uma vivência em prol de causas e de justiça. É uma grande honra poder publicar aqui, hoje, esta entrevista que Luís Sepúlveda tão generosamente concedeu.

Luis Sepúlveda 12/3 às 15:36

Estimado amigo Luis: de acuerdo, mándame esas preguntas y las responderé con mucho gusto
un abrazo
Luis
1 -Además del trabajo, el talento y la inspiración encontrar sus experiencias son una constante en su escritura. Su escritura es la encarnación, el retrato de estas experiencias o, por el contrario, fueron las experiencias que llevaron a la escritura como un vehículo para la voz de desacuerdo con las injusticias?

Luís Sepúlveda: Supongo que las dos cosas al mismo tiempo. Siempre he sido un hombre de izquierda, es decir que tengo un fuerte concepto ético de la vida y eso está siempre presente en lo que escribo. Soy un hombre, un ciudadano atento a lo que ocurre en el mundo, y esa atención de transforma más tarde en literatura.
2 -Recientemente ha mostrado su profundo pesar por la victoria de la derecha en Chile. Estas victorias de las derechas quieren decir qué? La memoria de la gente es corta? Una reconciliación con el pasado? O algo falló en la izquierda?
Luís Sepúlveda: La victoria de la derecha en Chile significa que el llamado "centro izquierda" que gobernó durante veinte años no logró la confianza de los chilenos. La pesidente Michelle Bachelet terminó su mandato con un 84 % de aceptación ciudadana, pero el candidato del "centro izquierda" no convenció a nadie, además, hubo orto candidato también auto denominado de "centro", Marco Enriquez Ominami, que construyó el triunfo de la derecha. Y el triunfo de la derecha demuestra además que la izquierda aún no tiene un proyecto político convincente. El pueblo no tiene la culpa de lo que hacen o no hacen sus dirigentes.
3 -En su escrito, junto con una excelente descripción de ambientes y una enorme capacidad para contar historias, hay espacio para las grandes causas en un aura de romanticismo. Ese es el secreto? Una cierta aura de romanticismo en la lucha por los principales problemas y las causas?
Luís Sepúlveda: No me siento un romántico pues a los románticos los mueve una especie de compasión individualista y yo creo en el esfuerzo colectivo, en la lucha de todos. Sucede que , simplemente, a veces el escritor tiene que ser la voz de su época.
4 -Ser un escritor de vida y de la escritura y como lengua materna hablada por 500 millones de personas, ¿alguna vez sintió acondicionado y trató de escribir de una otra forma o, por el contrario, esta responsabilidad le dio fuerza para no estar condicionado?
Luís Sepúlveda: No, nunca me he sentido condiconado. es cierto que pertenezco a una lengua compartida por casi 500 millones, pero el español es mucho más que es; es la pertenencia a una comunidad cultural profundamente contradictoria, a un crisol de diversidad cultural, social, política, étnica, económica , y esto genera un sentimiento de responsabilidad.
5 -Hoy en día, "los viejos todavía leía novelas de amor?"
Luís Sepúlveda: Creo que sí, ha estupendas novelas de amor.

Luis Bento

ESCREVER NÃO É AGRADÁVEL

Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.



Paul Auster


Por isso voltámos e com muita força!  Para divulgar, na próxima semana, uma excelente notícia a nível literário e editorial...

GOLO!



Um país de faz de conta, sem cheta, rumo ou moral. Sombra dúbia do passado, refém da Nossa Senhora, de milagres e nevoeiro. Um bolo-rei ao leme, um coelho na retranca, a nau catrineta à deriva, em ruínas, sem ideias, um fio de luz  ou nesga de futuro. Perdidos no fingimento entre uma mine e o dedinho em riste à espera dos golitos do Cristiano de peito inchado, lá vai o povo, cantando e rindo... Colossal!!

O TEMPO

Desde que inventaram a roda o mundo não parou mais... Então, tornemos a visitar este texto e aproveitemos a oportunidade para parar um pouco...


Ainda a mãe se encontrava prostrada na maca da ambulância berrando de dor de parto e já ela lhe esgadanhava as coxas metendo a cabeça de fora, ávida de ganhar o mundo. Nascida antes de tempo, com pressa de atingir a perfeição, tudo na sua vida fora uma olimpíada sem obstáculos. Dispensara as primeiras letras porque as segundas, trouxera-as com o cordão umbilical. Clássicos, modernos e assim-assim; contas, números e rabiscos foram segredos breves e acelerados, desvendados de forma esparsa e apressada. Faculdade, emprego, administração, adormecer em Londres, almoçar em Paris, jantar em Madrid, reuniões, accionistas e congressos... Foram degraus esgalhados a quatro e quatro numa escalada vertiginosa rumo ao sucesso, num sprint a contra relógio sem tempo para olhar para trás.

- “Não casas mulher?... Não tens filhos?... Vamos ao teatro?... Cinema? Um cafezinho?”- A tudo respondia com uma leveza insustentável:

- “Não tenho tempo!”

Até que um dia, por volta dos quarenta, numa curva da vida sem travões, durante uma viagem de carro com destino aos negócios, numa ultrapassagem com erro de cálculo foragido às leis da física vira, de repente, aquela luz frontal… A mesma que a encadeava agora vinda do tecto e iluminando todas aquelas batas brancas. Sentia frio, muito frio. Uma dormência letal no seu corpo banhado a hemorragia por dentro… Ao longe e de forma esbatida, ouvia murmúrios e o fraco tremeluzir do gráfico… E aquela luz… Aquela luz que a ofuscava… Se ao menos conseguisse fechar os olhos…

Então, de repente, de segadeira em punho, surgindo do meio do nada, esquálida, gélida e envolta no seu manto lúgubre surgiu a morte com o indicador espetado indicando-lhe que a seguisse…

"Que não… Que não ia, tinha muita coisa para fazer… Holdings para vender, contratos para assinar, posições para assumir"…

- "Piiiiiiiiiiiiiiiiii"… - O alarme sonoro e os acenos de cabeça foram a pedra de toque para desligar a máquina e apagar, finalmente, aquela luz…

A morte apontou-lhe o dedo de novo insistindo para que a seguisse…

- Não! Não me leves ainda! Deixei tanta coisa por fazer… Dá-me tempo…

Meneando a cabeça para a esquerda e para a direita, num movimento lento e sentenciador, a morte inclinou-se e com uma leveza insustentável proferiu:

- Desculpa! Não tenho tempo…
Luis BentoTerça-feira, 4 de Janeiro de 2011

ENTREVISTA COM CARLOS PINTO COELHO


Carlos Nuno de Abreu Pinto Coelho, jornalista, escritor, fotógrafo e brilhante comunicador e homem de cultura,  dispensa apresentações. Nasceu em Lisboa em 1944, frequentou a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa até ao 5º ano e ingressou no Jornalismo como repórter do jornal Diário de Notícias em Janeiro de 1968. Foi um dos fundadores do diário Jornal novo  dirigido por Artur Portela Filho. Até 1977 foi redactor da Agência de Notícias A.N.I., correspondente em Portugal da Rádio Deutsche Welle e redactor da revista Vida Mundial dirigida por Natália Correia. Na Radiotelevisão Portuguesa  foi director-adjunto de Informação (1977), chefe de redacção do telejornal - Informação/2 do Canal 2 (1978), director de Programas (1986/1989) e director de Cooperação e Relações Internacionais (1989/1991). Repartiu o seu talento pela rádio, pela televisão e pelo ensino onde foi conferencista no Instituto de Altos Estudos Militares, professor de jornalismo na E.T.I.C.e no Instituto Politécnico de Tomar. Ao longo de uma vida dedicada ao jornalismo, à cultura e à comunicação desempenhou muitos outros cargos e recebeu diversos prémios e distinções salientando-se o grau de Comendador  da Ordem do Infante D.Henrique atribuído em 2000. Dono de uma simpatia e afabilidade extremas, de mãos dadas com uma vasta cultura, teve a generosidade de aceitar o nosso desafio e deixar-nos aqui um belo momento de cultura e comunicação.

Entrevista de Luís Bento

A Carlos Pinto Coelho

31 Outubro 2010


1-Jean Dubuffet na sua “Cultura asfixiante” defendia que “(…) Um pouco de informação, o encontro fortuito de uma produção artística, alimentam sem dúvida o espírito de criação. Mas uma excessiva informação, um demasiado arreigamento pelas produções de arte, podem esterilizá-lo”. De certo modo, é o que está a acontecer hoje? O excesso de informação, o facilitismo da internet e de outros meios audiovisuais veio esterilizar o espírito criativo?


A resposta é, obviamente, não. Obviamente porque os factos estão aí, abundantes, a demonstrar que nunca o espírito criativo se manifestou com tamanha profusão e exuberância como nos nossos dias. A imensa parafernália de instrumentos da modernidade não é mais do que uma oferta de materiais ao serviço da criação, não é a criação ela mesma. Seria o mesmo que perguntar a um excelente chefe de cozinha se uma grande variedade de alimentos e uma boa quantidade de máquinas disponíveis para os confeccionar lhe roubam criatividade para inventar receitas novas. Claro que não acontece nada disso.

O ruído provocado pelo exagero de informação trepidante que caracteriza o nosso tempo é um sobressalto comparável ao bulício que o Iluminismo provocou na sociedade dogmática em que nasceu. Com mais liberdade de ideias e de comunicação, o espírito dos homens desdobra-se em sucessivos e inesperados patamares de inovação. E o espírito criativo dos homens do Iluminismo não se “esterilizou” por isso, como sabemos.


2-“A cultura revela tendência para ocupar o lugar até há muito pouco tempo ocupado pela religião. Tal como esta, possui agora, os seus profetas, os seus santos, (…) O conquistador apresenta-se ao povo não com as roupagens do bispo, mas do Prémio Nobel”. (Jean Dubuffet) Concorda com esta afirmação?


Todas as evidências estão aí para provar que o confronto entre o conhecimento e a religião é coisa do passado e que ambos podem coexistir em boa paz. Salvo em questões de comportamentos - onde subsistem ainda fronteiras muito difíceis de ultrapassar para os crentes militantes - já não há disputas de prioridades. Tanto a religião como o conhecimento aprenderam a instalar-se nos lugares que a tolerância lhes impôs e, se alguma vez esse equilíbrio se rompe, a sociedade civil insurge-se contra o prevaricador. Não vejo, portanto, que os heróis de um lado ou do outro tenham de se transverter para melhor sobreviver.


3-O programa “Acontece”, na televisão foi um hino à palavra e à cultura. O seu término e com a justificação pública de” ser muito caro”, que comentário lhe merece? Será o poder político, de tal forma obtuso ou receoso da cultura? Ou o povo insensível à sua importância? Quem é que anda a desafinar?


Não quero voltar a uma questão velha de anos, sobre que já me pronunciei exaustivamente. Nada aconteceu de novo que me mereça repetir que o orçamento do programa era modestíssimo e que a afirmação do ministro Morais Sarmento foi uma leviandade. O homem ficou carimbado por isso, na memória dos milhares de portugueses que perderam o “Acontece”. Continua viva, na Internet ( http://www.petitiononline.com/mod_perl/signed.cgi?acontece ) a petição de protesto assinada por mais de 16 mil pessoas e aonde ainda hoje alguns vão deixar umas palavras, em romagem de saudade...


4-Em relação aos livros e face às novas tecnologias e novos registos audiovisuais qual será, em seu entender, o futuro da literatura e, em última análise, da cultura em geral?


A Literatura existiu antes do Livro e seguramente existirá depois dele. Os conteúdos do espírito sempre fizeram caminho aproveitando-se dos novos suportes mas nunca morreram quando eles se tornaram obsoletos. A “Aparição” de Vergílio Ferreira há-de sempre ser luminosa, seja em que suporte “aparecer”. O mesmo para a Arte na imagem ou na música, cuja vitalidade só dependerá dos criadores, não dos materiais em que for produzida. A modernidade é coisa tão antiga e tão constante como o próprio género humano, não há que temê-la ou tentar refreá-la. O futuro começou ontem e já hoje o estamos a viver, não é verdade?


5-Para terminar, uma questão mais leve…Tendo em conta o seu percurso profissional , o que falta ainda “acontecer “ na sua vida?


Definitivamente, o livro que estou a escrever.


Muito cordialmente

Carlos Pinto Coelho
Luis BentoSexta-feira, 5 de Novembro de 2010

LA CAJA DE RECUERDOS

De mí mismo tengo muy poco… Un reloj a llenarse de horas, dos pilas de libros para leer, cuatro hojas de papel para imprimir, sellos, clips, lápices y gomas de borrar, conchas, peces y un acuario de plástico, rifas de quermeses, versos de Pessoa desordenados, los shorts de pana de la primera comunión, la lapicera de tinta permanente de la cuarta clase, el perfume del arroz con leche con canela de mi madre,  una caja de memorias para ordenar y el brillo de tres estrellas a relucir confidencias en un rincón del cielo, azul oscuro y espeso, infinito, del tamaño de la saudad,  de plomo de los soldaditos de la infancia….

BILHETE POSTAL


O processo criativo, por vezes, segue caminhos longos e tortuosos, atrasos, ausências, teimosias. Outras vezes, surpreende-nos e brinda-nos com novos registos. Num quotidiano que nem sempre é amargo e cinzento, a memória, às vezes, pode ser um abraço terno e doce com sabor a baunilha e morango.



O sol rasgava a manhã de domingo espreguiçando-se, sem pejo, pelo jardim, numa dolência cúmplice com o trinado dos pardais. Bela, quieta, imóvel, de olhos semicerrados, recostada sobre o banco talhado com esmero de artesão, deixou-se embalar pelo encanto terno da memória, de mão dada com a mãe, o cheiro da terra, o orvalho tatuado nas sandálias e o senhor da trotinete, em tom de branco encardido e esfacelado com três tirinhas de vermelho descorado da Olá, junto ao expositor dos postais. Vinte e cinco tostões de metafísica sob a forma de gelado servido em cone amolecido com duas bolas, invariavelmente, de baunilha e morango e os dedos, pegajosos, a escorrer pingos em câmera lenta sobre o bilhete postal para enviar saudades ao tio de França… Nós por cá cá vamos indo como Deus quer… E Deus tinha dias… umas vezes querendo outras fazendo-se de mouco…



Aqui e ali acendiam-se-lhe os olhos no tilintar da bicicleta esmurrada, na simplicidade da macaca, no chiar ferrugento dos baloiços. Ao fundo, um mural de azulejo carcomido pelo tempo com a ponte sobre o Tejo, que o pai insistia em chamar de Salazar porque não se fizera numa noite com canções numa metástase de carbonária, mas que se forjara na têmpera indomável e no querer arreigado do senhor presidente do conselho. E a mãe, que de carbonária só conhecia a roupa no alguidar e a revolução dos franceses a quem não tinha em muito boa conta, apreensiva, rosnando zangas pelo desmazelo inconsequente do bilhete postal. Doces eram as manhãs de brincadeira com o primo Daniel, de quem recordava o ar, na primeira comunhão, de anjinho pálido e inocente, segurando a vela trémula com as duas mãos, temente a Deus e à mãe se entornasse cera na camisa branca engalanada de folhos ou nos calções de bombazine azul a fugir ao veludo por ser mais caro. Temente ao pecado e à tentação a quem imaginava ser uma velha desdentada com buço, vestida de preto, a cheirar mal e a deitar fumo verde da boca cristalizada de verrugas. Um olhar e… zás! Cairia fulminado por raios e chispas. Queria benzer-se mas receava largar a vela. E assim, trémulo, esticava o pescocinho esguio e tenrinho entreabrindo os lábios para receber o corpo do Senhor num círculo com sabor a bolacha Maria. Se era para aquilo mais valia encontrar-se com o Senhor na porta da dispensa que, felizmente, estava a abarrotar de bolachas, abarrotando assim… de Salvação… para si e todos os seus… Depressa descobrira que o homem tinha morrido para lhes iluminar o caminho. Talvez o destino fosse zarolho ou a luz se tivessse apagado bem cedo… perdera-se… Mas sempre aceitara escondido, entre o remorso e a esperança, que as vagas passassem sem dificuldade, que a qualquer momento Jesus apareceria numa esquina indicando-lhe que o seguisse … Nunca lhe aparecera… A palavra perdera o peso na fragilidade dos gestos e cedo se dera conta que de Deus nada era adquirido mas, tão-só, emprestado.. restando-lhe a consolação de que, se não conseguira ser tudo aquilo que queria, pelo menos, fora tudo o que pensava vir a ser…



O som da buzina acordara- a do torpor da memória. As riscas sobreviviam, descoradas, no triciclo motorizado. Esboçou um sorriso entre o clausulado leonino da realidade e a retórica generosa do sonho, bela, imóvel, quieta reparou então que tinha os dedos pegajosos escorregando pingos de baunilha e morango, em câmera lenta, sobre o bilhete postal…



Abanou levemente a cabeça, inspirou fundo, levantou-se, deitou um último olhar à cidade onde a beleza, pedaço de encanto embrulhado no sorriso dos olhos, se estendia para além do céu…

A CAIXA DE MEMÓRIAS

De meu mesmo tenho muito pouco…  Um relógio a encher-se de horas,duas pilhas de livros para ler, quatro folhas de papel para imprimir, selos, clips, lápis e borracha, conchas, peixes e um aquário de plástico, rifas de quermesse,  versos do Pessoa em desalinho, os calções de bombazine da primeira comunhão,  a caneta de tinta permanente da quarta classe,  o cheiro do arroz doce com canela da minha mãe, uma caixa de memórias  para arrumar e o  brilho de três estrelas a reluzir confidências num canto do céu, azul escuro e espesso, infinito, do tamanho da saudade de chumbo dos soldadinhos da infância…

ENTREVISTA COM MARGARIDA REBELO PINTO

Neste espaço, para além dos textos do escriba, sempre se deu lugar à divulgação e discussão de ideias, acontecimentos e autores. Margarida Rebelo Pinto dispensa apresentações. Amavelmente aceitou o convite deste blog para uma pequena entrevista respondendo a cinco singelas questões que, cremos, será mais um caminho para desfrutar da escrita de uma autora que pôs os portugueses a ler. Conhecia-a na Faculdade de Letras de Lisboa no tempo em que mantinha estreita colaboração com o jornal Se7e. Cedo se lhe adivinhava o reflexo da sua personalidade na sua escrita ágil, firme, determinada e irrequieta. O seu primeiro livro, Sei lá, publicado em 1999, foi um dos maiores sucessos de vendas em Portugal, atingindo números de vendas pouco usuais para o país. O seu último livro atingiu, até ao momento, a marca de sessenta e cinco mil livros vendidos, num inequívoco sinal de adesão do público que se revê na escrita contemporânea e ágil e no retrato de um quotidiano urbano, nem sempre, em sossego. Reiterando os nossos agradecimentos, passemos à entrevista...                                
                                                                       Como surge Margarida Rebelo Pinto no mundo literário?

Sempre quis ser escritora. Tive a sorte de crescer entre livros, os meus pais sempre me deram várias opções para escolher desde muito cedo. A partir dos 10 anos já lia todos os dias, é uma paixão que nasceu comigo. Nem me lembro quando comecei a escrever, deve ter sido mais ou menos nessa idade. O Sei Lá, publicado em 1999, (1º Prémio Literário Fnac em 2000) foi o primeiro romance a singrar por entre alguns manuscritos que andava a trabalhar há alguns anos. Os outros ficaram na gaveta, nunca mais lhes peguei.

Tom intimista,agilidade narrativa e personagens que se passeiam no espelho de uma realidade quotidiana. É esse o segredo do seu sucesso?

Não sei. Às vezes penso que ainda é mais simples do que isso, é uma questão de empatia. As pessoas lêem os meus livros com o coração porque se identificam com o que escrevo, é como se elas fossem os meus personagens, há uma identificação profunda e natural e esse fenómeno, enquanto escritora, nunca imaginei possível a tão larga escala

Como encara a "ameaça" de blogues e redes sociais ao livro em papel?

São coisas muito diferentes! Nunca fui fã da blogosfera, há muito pouca coisa boa e muitos delírios de autoreferência, não é nada a minha onda. As redes sociais têm um papel muito importante, elas aproximam as pessoas e são uma meio de divulgação especialmente eficaz e interessante.
Em "Não há coincidências" assistimos a uma resistência ao machismo não se deixando cair, contudo, no folclore feminista. É um equilíbrio real ou uma estratégia narrativa?

As duas coisas. Portugal ainda é um país de misóginos, essa é uma das minhas batalhas enquanto mulher e enquanto escritora, denunciar e combater a misoginia. O foclore feminista irrita-me imenso, acho uma coisa foleira, démodé. O que me interessa é perceber porque é que os homens têm medo das mulheres, por exemplo. Ou perceber porque é que as mulheres se deixam maltratar e não se conseguem libertar de relações doentias. As intrigas familiares e as relações amorosas são a base dos meus livros. A ficção serve para eu arrumar o caos interior. Mas nunca está arrumado, nunca, é uma tarefa perpétua.

Rui Veloso cantou: "Não há estrelas no céu", Margarida Rebelo Pinto escreveu: "Não há coincidências". Afinal em que ficamos?

Claro que há estrelas no céu, claro que há coincidências. Acredito que nada acontece por acaso, e o que semeamos é o que colhemos, mas para isso é preciso semear
 Luis Bento
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EL AGITADOR DE CONCIENCIAS


Uma entrevista e um texto generoso sobre o escriba no portal do BBVA Espanha....

04-04-11
Destacado de la semana
Luis Bento, el agitador de conciencias 

Luis Alberto Bento es un lisboeta que desarrolla su labor en la Unidad de Apoyo al Cliente Interno (UACI) en BBVA España y Portugal sin descuidar el gran amor de su vida, la literatura. Escritor polifacético donde los haya, Luis no renuncia a casi ningún género literario y aprovecha las nuevas herramientas digitales para la difusión de su obra. En su curriculum literario destacan la publicación de un libro de crónicas costumbristas en Internet, ‘Lusitânia Online’, colaboraciones asiduas con la revista cultural ‘Lusofonia  Nova Águia’ y el lanzamiento de su nueva novela, ‘Verde Código Verde’.
La necesidad de escribir y el interés por la literatura se manifestaron en Luis a una edad muy temprana. Después de haber devorado una infinidad de volúmenes literarios sin discriminar géneros ni estilos, Luis Bento decidió dedicarse a las Letras y se graduó en Lenguas y Literaturas Modernas. Sin embargo, el destino y la casualidad hicieron que cambiara el rumbo de su carrera que, desde 1991, se ha desarrollado en la sede del Banco en Portugal. En todo ese tiempo, Luis ha sido incapaz de resistirse al ‘gusanillo’ de la escritura, que con el paso de los años se ha intensificado, siendo sobre todo la necesidad de relatar e intervenir en la realidad social lo que precipitó su regreso a la pluma.
Una pluma en sentido figurado, ya que Luis ha sabido sacar provecho de las nuevas herramientas del mundo digital, y ha hecho del blog su medio de cabecera para la difusión de sus relatos, crónicas y ensayos. Su primera obra publicada, ‘Lusitânia Online’, es precisamente, una recopilación de sus crónicas en formato digitalizado que puede descargarse a través de Internet desde cualquier parte del mundo. Un acceso ilimitado que sedujo a Luis desde el primer momento: ”Internet ha democratizado el acceso a la escritura y a la edición, un mundo tradicionalmente muy cerrado, que gracias a estas herramientas pone en contacto a personas de diferentes realidades sociales y profesionales y da voz a un pensamiento popular cada vez más crítico y participativo”.
Sin embargo, su inmersión en el mundo 2.0 no conlleva una renuncia a la literatura más sesuda y comprometida. Por el contrario, Luis se define como un ‘agitador de conciencias’ y en la medida de lo posible, trata de ubicar sus relatos y sus crónicas en la realidad social portuguesa. Como los fados, sus historias hablan del drama de lo cotidiano, de la fútil lucha contra el destino, siempre con un trasfondo moral y un final inesperado, que el autor sazona con un tono deliberadamente irónico y sarcástico. Una escritura realista y reflexiva que sigue la estela de sus grandes referentes lusos y españoles, entre los que destaca a Miguel Torga, Lobo Antunes y a Don Miguel de Unamuno.
Ahora, tras haber publicado su serie de crónicas y haber realizado diversas colaboraciones con la revista ‘Lusofonia Nova Águia’, prepara la edición de su primera novela, ‘Verde Código Verde’, un retrato crítico y costumbrista de la sociedad portuguesa que se desarrolla paralelamente en dos periodos históricos, la época revolucionaria y el presente actual. Mientras aguarda su publicación, colabora con un escritor compatriota afincado en Estados Unidos en un proyecto literario de gran envergadura, al tiempo que sigue entreteniendo y ‘agitando’ las mentes de los internautas a través de sus bitácoras. Una causa que Luis Bento considera intrínseca a la propia escritura: “El escritor puede y debe ejercer su influencia en un mundo que muta a una velocidad vertiginosa. No podemos limitarnos a los valores estéticos, debemos usarlos para defender las grandes causas; porque sin literatura de causas no tenemos pensamiento crítico”.
Para conocer más sobre la obra de Luis Bento, puedes consultar su blog.