A minha tia, da parte da minha mãe, que sempre me disse que tudo são recordações muito antes do Vítor Espadinha ameaçar o Bruno do Carvalho com duas “bufatadas”, e que sempre me gabou os dotes de escrita e outros que não posso nomear em voz alta, diz que vivemos numa terra de fanecas e besugos, com um entertainer na presidência à espera do cabal apuramento das responsabilidades sobre Tancos, mas a minha tia acha que ele só devia apurar o refogado de lentilhas e o traço com lápis número dois, para desenhar um triângulo isósceles, por causa das figurinhas que vai fazendo para as selfies. A minha tia também sempre me disse que eu era um bruto com pensamentos frívolos e carnais e eu, a bem dizer, sempre preferi a febra ao repolho, mas enquanto vou aguardando pela edição do romance e a entrevista à minha pessoa, mais à minha gata MEX que tem dois olhinhos de um verde vivo onde as papoilas saltitantes marcam mais golos que o clube das toupeiras, vou deitando um olhinho ao que se passa no país e no mundo e se, no mundo, a China já chegou ao lado oculto da lua e na Alemanha as vacas gordas foram pastar para outro lado, aqui, no rectângulo, o entertainer ligou para a “saloia da Malveira” a desejar boa sorte e a encomendar um conjunto de atoalhados.
Parafraseando o Francisco José Viegas, onde anda uma chuva de picaretas quando precisamos dela?
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segunda-feira, 7 de janeiro de 2019
terça-feira, 26 de junho de 2012
O CHEIRO DA CHUVA
Na sua pressa, o mundo virara-lhe costas e não lhe dera tempo de agarrar o sonho. Ao certo não sabia em que ponto se perdera na angústia e descambara na resignação. Por isso, vivia a vida imaginando-a, gastando horas em recordações e leituras. Alheia à mulher sentada a seu lado que, de sorriso escancarado até ao esófago debitava decibéis de desinteria verbal, entre a pedra mármore da cozinha e a prima, tontinha, internada no Júlio de Matos que ficara bem nas fotografias por causa dos oito megapixels da fabulosa máquina, oscilava entre a observação do espécimen a quem a vida reservara metade de coisa nenhuma, o caderno aberto diante de si e o legítimo saborear do café anestesiado com duas grossas colheradas de açúcar.
Algures entre o cheiro da chuva a cair na terra húmida e a menina desenhando corações com o indicador direito sobre o bafo colado na vidraça, as recordações e as linhas tomavam forma nas histórias do António Roscas que torneara a alcunha na fábrica de porcas e parafusos falida até à medula, no Manel que andava lá fora a lutar pela vida ou na mãe que, de ouvido sintonizado na rádio em frequência modelada de dor , enviava a proverbial notinha de vinte escudos no cabograma acabando por arrastar os joelhos rasgados, em Fátima, pelo regresso do irmão de África que perdera uma perna e deixara lá a alma inteira. O que mais guardava de precioso era a imagem do outono a bater à porta, as camisolas de gola alta a picar no pescoço, a avó com as mãos ásperas numa carícia dengosa, o peixe frito a pingar óleo na toalha em noite de sexta- feira santa para não cometer pecado, os reis e rios de Portugal decorados na ponta da língua e o cheiro da chuva. A memória era um fio condutor despojado de vontades, em corrente contínua, onde, pelo meio, sobrevinham as mágoas. Tinha muitas, mais que pedras no caminho e nem castelo ou muralha ou verso do Pessoa lhe apagava o sorriso, para além de que gostava de linhas escorreitas, palavras doces e chocolate amargo. Escrever não era mais que ler parágrafos alinhavados pelo tempo e, se este não era mais que uma sucessão vertiginosa de coisas por fazer que lhe desarrumava a vida, formatada para aceitar o infortúnio com naturalidade, às vezes era na doçura da palavra e no travo amargo do chocolate, arrastados pela memória, que fazia um intervalo, percebendo então que assim, o mundo andava bem mais devagar…
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