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terça-feira, 26 de junho de 2012

BILHETE POSTAL


O processo criativo, por vezes, segue caminhos longos e tortuosos, atrasos, ausências, teimosias. Outras vezes, surpreende-nos e brinda-nos com novos registos. Num quotidiano que nem sempre é amargo e cinzento, a memória, às vezes, pode ser um abraço terno e doce com sabor a baunilha e morango.



O sol rasgava a manhã de domingo espreguiçando-se, sem pejo, pelo jardim, numa dolência cúmplice com o trinado dos pardais. Bela, quieta, imóvel, de olhos semicerrados, recostada sobre o banco talhado com esmero de artesão, deixou-se embalar pelo encanto terno da memória, de mão dada com a mãe, o cheiro da terra, o orvalho tatuado nas sandálias e o senhor da trotinete, em tom de branco encardido e esfacelado com três tirinhas de vermelho descorado da Olá, junto ao expositor dos postais. Vinte e cinco tostões de metafísica sob a forma de gelado servido em cone amolecido com duas bolas, invariavelmente, de baunilha e morango e os dedos, pegajosos, a escorrer pingos em câmera lenta sobre o bilhete postal para enviar saudades ao tio de França… Nós por cá cá vamos indo como Deus quer… E Deus tinha dias… umas vezes querendo outras fazendo-se de mouco…



Aqui e ali acendiam-se-lhe os olhos no tilintar da bicicleta esmurrada, na simplicidade da macaca, no chiar ferrugento dos baloiços. Ao fundo, um mural de azulejo carcomido pelo tempo com a ponte sobre o Tejo, que o pai insistia em chamar de Salazar porque não se fizera numa noite com canções numa metástase de carbonária, mas que se forjara na têmpera indomável e no querer arreigado do senhor presidente do conselho. E a mãe, que de carbonária só conhecia a roupa no alguidar e a revolução dos franceses a quem não tinha em muito boa conta, apreensiva, rosnando zangas pelo desmazelo inconsequente do bilhete postal. Doces eram as manhãs de brincadeira com o primo Daniel, de quem recordava o ar, na primeira comunhão, de anjinho pálido e inocente, segurando a vela trémula com as duas mãos, temente a Deus e à mãe se entornasse cera na camisa branca engalanada de folhos ou nos calções de bombazine azul a fugir ao veludo por ser mais caro. Temente ao pecado e à tentação a quem imaginava ser uma velha desdentada com buço, vestida de preto, a cheirar mal e a deitar fumo verde da boca cristalizada de verrugas. Um olhar e… zás! Cairia fulminado por raios e chispas. Queria benzer-se mas receava largar a vela. E assim, trémulo, esticava o pescocinho esguio e tenrinho entreabrindo os lábios para receber o corpo do Senhor num círculo com sabor a bolacha Maria. Se era para aquilo mais valia encontrar-se com o Senhor na porta da dispensa que, felizmente, estava a abarrotar de bolachas, abarrotando assim… de Salvação… para si e todos os seus… Depressa descobrira que o homem tinha morrido para lhes iluminar o caminho. Talvez o destino fosse zarolho ou a luz se tivessse apagado bem cedo… perdera-se… Mas sempre aceitara escondido, entre o remorso e a esperança, que as vagas passassem sem dificuldade, que a qualquer momento Jesus apareceria numa esquina indicando-lhe que o seguisse … Nunca lhe aparecera… A palavra perdera o peso na fragilidade dos gestos e cedo se dera conta que de Deus nada era adquirido mas, tão-só, emprestado.. restando-lhe a consolação de que, se não conseguira ser tudo aquilo que queria, pelo menos, fora tudo o que pensava vir a ser…



O som da buzina acordara- a do torpor da memória. As riscas sobreviviam, descoradas, no triciclo motorizado. Esboçou um sorriso entre o clausulado leonino da realidade e a retórica generosa do sonho, bela, imóvel, quieta reparou então que tinha os dedos pegajosos escorregando pingos de baunilha e morango, em câmera lenta, sobre o bilhete postal…



Abanou levemente a cabeça, inspirou fundo, levantou-se, deitou um último olhar à cidade onde a beleza, pedaço de encanto embrulhado no sorriso dos olhos, se estendia para além do céu…