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sexta-feira, 29 de junho de 2012

A PRETO E BRANCO



Preto e branco, assim estampado em grossa letra de imprensa na prata mágica do chocolate, sucedâneo das melhores marcas “à venda nas casas da especialidade”, que a mãe lhe comprava, numa memória longínqua, enrodilhada em café torrado e feijão branco a granel, na mercearia do senhor Rodrigues, encravada num prédio a cair de podre no declive acentuado da General Taborda, para as bandas de Campolide onde hoje funciona um banco, lembrava-lhe, com clareza, o gesto rotineiro do senhor Rodrigues ao balcão. Após as compras, sacava do rectângulo carcomido de madeira com uma mola a prender meia dúzia de folhas amarelecidas e enroladas onde assentava, no rol, as dívidas, os calotes e a vida da vizinhança penhorada de remedeio omnipresente. O melhor de tudo era quando o senhor Rodrigues oferecia um chupa daqueles coloridos , aos montes dentro dum boião enorme de vidro com tampa vermelha, embrulhado no cinismo das parcelas amontoadas a eito no rol. O chupa sabia a ginjas mesmo sem nunca as ter provado. Outro gesto rotineiro numa praxe instituída, eram os vinte e cinco tostões que a mãe dava sempre ao homem em cadeira de rodas, junto à berma, que se esquecera das pernas, numa mina cravada no meio do mato, naquele pontinho pintado a amarelo no globo terrestre com umas letras a dizer Guiné. Na chegada a casa, derretia paulatinamente o chocolate na companhia do Jornal do Cuto sob o pano de fundo do Simplesmente Maria do Rádio Clube Português.

Saudades… Tinha saudades das memórias doces, do cheiro do café, do chocolate…

Da Mãe… 

terça-feira, 26 de junho de 2012

O TEMPO

Desde que inventaram a roda o mundo não parou mais... Então, tornemos a visitar este texto e aproveitemos a oportunidade para parar um pouco...


Ainda a mãe se encontrava prostrada na maca da ambulância berrando de dor de parto e já ela lhe esgadanhava as coxas metendo a cabeça de fora, ávida de ganhar o mundo. Nascida antes de tempo, com pressa de atingir a perfeição, tudo na sua vida fora uma olimpíada sem obstáculos. Dispensara as primeiras letras porque as segundas, trouxera-as com o cordão umbilical. Clássicos, modernos e assim-assim; contas, números e rabiscos foram segredos breves e acelerados, desvendados de forma esparsa e apressada. Faculdade, emprego, administração, adormecer em Londres, almoçar em Paris, jantar em Madrid, reuniões, accionistas e congressos... Foram degraus esgalhados a quatro e quatro numa escalada vertiginosa rumo ao sucesso, num sprint a contra relógio sem tempo para olhar para trás.

- “Não casas mulher?... Não tens filhos?... Vamos ao teatro?... Cinema? Um cafezinho?”- A tudo respondia com uma leveza insustentável:

- “Não tenho tempo!”

Até que um dia, por volta dos quarenta, numa curva da vida sem travões, durante uma viagem de carro com destino aos negócios, numa ultrapassagem com erro de cálculo foragido às leis da física vira, de repente, aquela luz frontal… A mesma que a encadeava agora vinda do tecto e iluminando todas aquelas batas brancas. Sentia frio, muito frio. Uma dormência letal no seu corpo banhado a hemorragia por dentro… Ao longe e de forma esbatida, ouvia murmúrios e o fraco tremeluzir do gráfico… E aquela luz… Aquela luz que a ofuscava… Se ao menos conseguisse fechar os olhos…

Então, de repente, de segadeira em punho, surgindo do meio do nada, esquálida, gélida e envolta no seu manto lúgubre surgiu a morte com o indicador espetado indicando-lhe que a seguisse…

"Que não… Que não ia, tinha muita coisa para fazer… Holdings para vender, contratos para assinar, posições para assumir"…

- "Piiiiiiiiiiiiiiiiii"… - O alarme sonoro e os acenos de cabeça foram a pedra de toque para desligar a máquina e apagar, finalmente, aquela luz…

A morte apontou-lhe o dedo de novo insistindo para que a seguisse…

- Não! Não me leves ainda! Deixei tanta coisa por fazer… Dá-me tempo…

Meneando a cabeça para a esquerda e para a direita, num movimento lento e sentenciador, a morte inclinou-se e com uma leveza insustentável proferiu:

- Desculpa! Não tenho tempo…
Luis BentoTerça-feira, 4 de Janeiro de 2011