quarta-feira, 25 de julho de 2012

AS PALAVRAS


Sentia falta das palavras, dos gestos, do mimo e do sorriso com que pintava o dobrar dos dias, do olhar terno e profundo, convite explícito e aberto a devassar-lhe a alma, em  final de tarde, remendo de primavera colado à pressa sobre aquele Dezembro irreconhecível e confuso no jardim de relva bem tratada, com um castanheiro secular, um banco pintado de fresco  e uns arcos de pedra do tempo dos romanos obscenamente grafitado sem acento: “Antonio ama Maria Inês” com o peso do apelido a reforçar a sinceridade da declaração.
Doía-lhe a inconstância da presença. O sobressalto, o tempo, os silêncios. Caprichos do destino a brincar sem cerimónia. Doía-lhe a falta dos seus braços envolvendo-a no reflexo do espelho, pela manhã. E de tanto doer achava, por vezes  que o coração era uma dor do tamanho do mundo, percebendo, afinal  de contas,  que o amor, era coisa maior que ele…

segunda-feira, 23 de julho de 2012

HISTÓRIAS DA TERRA - OS PANFLETOS


Fermín Garcia Sevilla

Foi logo a seguir ao último cruzamento entre a História e a Civilização, já os dinossauros tinham recolhido aos compêndios de ciências naturais, que José Gonçalves, à força de muitas flexões do estômago à hora da refeição, abraçara as teorias Marxistas. Levando atrasos de comboio regional para juntar duas letras da dimensão duma junta de bois, achava, contudo, que a justiça só punha palas na manta verde e retalhada de aridez endémica no terreno sinuoso de Castelo Branco e, apesar das intermitências com que dedilhava o alfabeto, a ideia de justiça, igualdade, pão e trabalho para todos, fora cultura que germinara, sem esforço, no terreno ávido e fértil do seu cérebro. Após o despedimento pelo capataz depois do episódio do almoço condimentado a pedradas, não arranjara outro sustento melhor que uns vagos e dispersos biscates pastoreando umas cabras e limpando mato. Nas suas longas passeatas pelos pinhais fora recrutado por um finalista universitário para lhe guardar e distribuir panfletos subversivos de apelo à luta armada contra a ditadura. A princípio, atraído pelos símbolos do trabalho, a foice e o martelo e, mais tarde, pela conversa do estudante, acabara por se empenhar na guarda e distribuição dos panfletos. Ao certo, não sabia o que continham, mas sabia aferir da sua importância…

Três dedos, assim alcunhado desde que, na festa em honra de Santo André das Tojeiras apanhara um foguete perdido e o mesmo lhe rebentara entre os joelhos, acabando com a serventia das partes pudibundas e destroçando-lhe dois dedos da mão direita, aliara a frustração ao desempenho activo e alarvemente zeloso da função de agente da P.I.D.E. Perseguia sem dó, ré, piedade ou outra inscrição de pauta, os “inimigos” do estado. Célebres tinham sido as suas investidas, com ajuda dos militares da GNR, na caça a perigosos subversivos vermelhos que tinham posto em cheque a segurança da Pátria. Certa ocasião, Sebastião Béu Béu, onomatopaico por baptismo e borracho pelas vicissitudes da vida, alegara ter visto o Armando do Lagar a caminhar sobre as águas do rio Ocresa…” Milagre”!! A notícia rastilhara célere e chegara aos ouvidos enfarinhados em serume do agente. “Que não! Não podia ser… Milagres só em Fátima com a bênção de sua excelência o Presidente do Conselho” (fazendo uma vénia reverencial), “se o povo começa a ver milagres fora da órbita do regime, ao invés de termos todos a ver para o mesmo lado, temos uma zarolhice subsversiva que põe em causa a argamassa sustentadora do regime: Deus Pátria e Família… Se não respeitam a família é como o outro... Estes burros só sabem pedir forragem na manjedoura, mas confrontar o milagre oficial sancionado pela Pátria... Isso é que não!” Sebastião andava sempre borracho e a visão fôra atribuída ao seu estado de embriaguês permanente, mas perante a insistência nas visões, Três dedos, num dia em que ele andava a regar umas leiras de terra num povoado distante, empurrara-o para dentro do poço… A explicação oficial dita em tom irónico era que “Deus escrevera por linhas tortas: o homem que andava sempre borracho acabara por morrer afogado… em água… “Deus estendera-lhe a mão e ajudara-o a lavar os pecados nas mesmas águas puras que batizaram São João Baptista…” Abriam-se-lhe as portas do céu para uma vida imaculada que não soubera levar em terra”… A explicação não convencera ninguém, muito menos o José Gonçalves... Três dedos, apenas por curiosidade mórbida, ainda se deslocara ao local indicado tendo, com a ajuda de uma vara, detectado um caminho de pedras bem no meio do rio… Milagre não era, decididamente! Quanto muito, algum comunista que ali plantara os seixos para escapulir à polícia ou para mangar com a fé cristã…

José Gonçalves tinha alguns animais de criação e uma cavalo tingido comprado nos ciganos chamado Russo, o bicho era má rês, arisco, agitado, não tolerava arreios ou cangote. Escouceava tudo e todos, bastas eram as vezes em que tinha que consertar o estábulo, não servia para trabalhar mas afeiçoara-se ao bicho e, entre eles, estabelecera-se uma cumplicidade de estado de espírito, ambos queriam ser livres. Limitava-se a dar-lhe comida, guarida no palheiro e a passeá-lo pelos matos. Tinham grandes diálogos, o cavalo já ouvira os postulados de Marx, Trotsky e outros teóricos, José Gonçalves discorrera sobre o paraíso na terra lá para as bandas de leste numa sociedade onde os homens não eram explorados pelos homens ou qualquer outro tipo de besta.

Três dedos, pressionado pelo chefe de brigada, queria encontrar, a todo o custo, os panfletos do partido comunista, não pela mensagem, pois aquela gente não sabia ler, mas porque lhe custava andarem a mangar com o estado e porque contava passar, ele próprio, a chefe de brigada se apanhasem o tipógrafo. Não fôra preciso muito para desembocar no encalço do José Gonçalves. Numa noite, acompanhado de dois cabos da guarda, batera-lhe à porta. À força de bastonadas vasculharam tudo em busca dos panfletos e de um tal Marx…”Que não o acobertassem porque era pior!” Perante o choro e a resposta atabalhoada da mulher de José Gonçalves, a ignorância, que aliada à maldade e ao poder constituem uma trilogia perigosa e violenta, só se saciou com a senhora prostrada no chão jurando por Deus e todos os cromos da santíssima trindade que o tal Marx pernoitara ali mas abalara há meia hora atrás…Não querendo aparecer de mãos a abanar, até porque não tinha dedos suficientes para contar até dez, levou-o para o posto da guarda onde deu continuidade à sessão de sevícias e tortura. O chefe de brigada, homem arguto e enfadado com ridicularias menores, decidira mandar soltar josé Gonçalves: “solto ele indica mais facilmente onde estão os panfletos, quiçá a tipografia, quiçá o tipógrafo...”

José Gonçalves regressara a pé levando uma eternidade de via sacra, lenta e dolorosa, a chegar a casa, mas o tempo suficiente para arquitectar a resposta à altura da baixeza do infame três dedos…

Alguns dias depois andava a guarda, esbaforida, revolvendo céus e terra em busca do Três dedos. O agente não mais fora visto desde a noite do interrogatório ao José Gonçalves, ninguém lhe pusera a vista ou outro órgão em cima…decidiram ir a casa do José...
Nada… Ninguém… Silêncio absoluto, apenas o escoucear e relinchar do Russo… Arrombaram a porta, nem vivalma, nem sinais, verrugas ou cheiro do josé Gonçalves e da mulher... “Ai o madraço que preparou alguma! Vai ter muito que contar no Torel! Vasculharam tudo deixando para o fim o palheiro, ninguém se atrevia a chegar perto do Russo. O cabo decidu ir buscar a carabina ao carro...
À mesma hora, José Gonçalves, ainda combalido, seguia com a mulher no carocha preto e discreto do tipógrafo rumo a Espanha, com um sorriso nos lábios...

Bang! Bang! - Dois tiros para o ar e o Russo, assustado, rebentou com o que restava da porta e deitou a correr em direcção à liberdade do pinhal… De lanterna na mão, os polícias entraram, a medo, dentro do palheiro… A uma canto, completamente ensaguentado e marcado pelas ferraduras do Russo, jazia inanimado, o agente da P.I.D.E. junto a uma prensa artesanal, no meio de centenas de panfletos subversivos esvoaçando pela força da corrente de ar…

quinta-feira, 19 de julho de 2012

VOAR

Eric Fischl. Bad Boy


- Apeteces-me! – A desenhar-se-lhe nos lábios, sussurro solto e certeiro agitando a melancolia das memórias, dúvidas e hesitações com que se mirava, a medo, ao espelho, fugindo do reflexo baço da existência, qual pássaro de asa curta a ensaiar o vôo.

- Apeteces-me! – A tocar-lhe a pele, onde, numa obediência cega e gramatical, as palavras se diziam e deixavam dizer, impregnadas de cheiro e  entrega, em território livre com o amor à redea solta a baixar a guarda e sem saber que nome dar a tanta intensidade.

- Apeteces-me! – E ele a regressar à doçura com que a acarinhava com palavras firmes... estou…tenho…devo… quero... tão sequencialmente doce, a terminar num baraço irremediavelmente fiel à singeleza do encanto próprio da inocência da criança e que lhe fizera, lenta e paulatinamente, perceber que era no perfume e  leveza das mesmas que poderia voar ou, simplesmente, encontrar forma de existir...

terça-feira, 17 de julho de 2012

A PONTE



Do mundo conhecia-lhe apenas o peso carregado em ombros, moldado na plasticidade da palavra com que brindava os dias. O destino a fazer-se cúmplice e a vontade a desenhar-se no corpo e a perder-se na curva doce do seu olhar,numa breve pausa, percebendo , então, num flash de memória da infância medida na explícita aritmética da Dona Rute onde dividia amiúde cestos por laranjas com resto zero, coleccionava reis e rios de Portugal no caderno de história e geografia ou no manifesto pavor de alturas que o impedia de atravessar pontes , que o melhor de tudo acontecia nos intervalos,  com a vida a olhar de soslaio e a deslizar enquanto  a morte se distraía, que o tempo era tão antigo e disperso como as naus para a Índia, que ganhar o mundo era levantar os olhos do chão, medir a distância em sonhos e sorrisos, sentir-lhe a pele com cheiro de giesta e urze no final da tarde e render-se àquele olhar a desnudar-lhe alma e uma vontade imensa de descobrir se o amor morava para lá daquela ponte rasgada sobre as margens de Neruda.
Momento tão intenso quanto breve, o tempo suficiente de lhe ler na profundidade do olhar o convite para a travessia da ponte e ele,esboçando um sorriso  sôfrego e inocente, indicando que, sem se dar conta, já levava mais de meio caminho feito

A FOME



Acordo num salto impulsionado por mola invisível. O despertador há muito que estrebuchara em alarmes perdidos na twilight zone. Sete e um quarto!!! A dor de cabeça aumentou proporcionalmente à consciência do atraso. Nem tempo tinha para pequeno almoço.O banho ! Rápido.! Um duche forreta com água morna, uma passagem de máquina ao de leve pela pele,  metade dos pelos teimosamente semeados na face. Não há tempo a perder...tou atrasadíssimo!!!... Detesto isto! e esta dor de cabeça... e de estômago... que seca! Os patamares descem-me sob os pés ao ritmo de records olímpicos, deito rua abaixo até à esquina onde está estacionado o meu amado Golf de 1989. Mochila arremessada , cinto,  sapatada no acelerador... sapatada no acelerador...chave...Não! hoje não! não me vais dar nega...que nervos!...vá lá!!...vá lá... pegou!!... Rápido!... autoestrada e ainda chego a tempo... o pior é esta dor de estômago... porra! Nem café, nem pequeno almoço, todo desalinhado... o Golf rola em aceleração máxima para os seus cavalos cansados da fadiga acumulada ao longo de 19 anos...Filipe Massa faz uma prova impressionante, destreza máxima na descida do Monsanto... e esta dor de cabeça potenciada pela fome... que dor de estômago... Amoreiras... lá tá... a tal ruazinha com parquímetros avariados... A sorte brilha na forma dum lugar vago... mesmo à maneira... 8h15... vamos...corre... corre Carlos Lopes... do Rato à Castilho, frente ao Heron, é um tirinho... atravesso o largo em corrida desenfreada. Chego à esquina da Herculano... cinco minutos... se não chego em cinco minutos os telefones já devem estar todos a tocar... detenho-me diante do velho que, à falta de rendimento mínimo garantido, arredonda a pensão de sobrevivência distribuindo o Destak... e é então que reparo na velha... olhar vago, aflito, desesperado, tom lamentoso, roupas puídas e as mãos retorcendo-se em movimentos infinitos:
- Hoje não estão a dar nada?
- Não... - respondeu o velho - hoje nem os da Danone, nem os da Matinal...nada!
Olhei para o relógio...já está...vou chegar atrasado...A curiosidade matou o gato e eu, que de felino e belo apenas guardo as seis vidas que me restam, perguntei:
- Estão a dar o quê?
- Ah...Normalmente estão aí as carrinhas a fazer publicidade e dão iogurtes, leite, sumos...mas hoje não vieram...a velha vem cá todos os dias para comer qualquer coisa...
Olhei para ela. O seu olhar, vago, perdido, olhando em redor na esperança de que ainda aparecessem...
O Velho deu-me o Destak. Levei as mãos ao estômago... 
- Foda-se! Perdi a fome...

CONTAR ESTRELAS



Aprendera que a vida corria a várias velocidades, especialmente na idade adulta, em quarta a fundo, quando regressava à marcha lenta e engasgada da infância, lá na terra, com o pai a perguntar-lhe  o que fazia ele, tão hirto e sério a olhar para o céu.

- Conto as estrelas! - Assim, obscenamente seguro e despido de vaidade. Deves contar deves…nem pró ano sais daí…anda! Mexe-te! Vai lavar os dentes e cama, que elas não fogem. Tens a vida toda para as contar…

- Dois milhões quatrocentas e trinta e duas mil cento e vinte e uma…- Com rigor de contabilista encartado em minudências. O pai cofiou a barba e alternou o olhar desconfiado e prescrutador entre o miúdo e o céu, escuro como breu, pejado de pontos brilhantes que ele iria jurar, ter visto, naquele momento, estarem a sorrir…

domingo, 15 de julho de 2012

SILÊNCIO


Alfredo Araújo Santoyo

Três pequenas histórias, três perspectivas sobre o silêncio com leituras nas entrelinhas. A morte, o quotidiano e o amor.

O SILÊNCIO - I


Num frémito, a brisa acenara-lhe à janela onde passava páginas em branco, noites a fio, a desenrolar o silêncio das palavras de olho nas estrelas. Sibilina, a morte segredara-lhe que cair nos seus braços era viver como estrela, brilhando, as boas, mais que as más. Não havendo pecados a expiar, nem grandes nem pequenos, pegou na alma, subiu ao terraço, galgou o parapeito e deixou-se levar, de um sopro, no brilho do silêncio…


SILÊNCIO! - II


Amarelecida de inutilidade, ciosa do traço tosco da enfermeira de dedinho em riste sobre a boca, a placa sobrevivia, a custo, num equilíbrio precário entre a força de gravidade e a cola ressequida, escorregando numa lentidão imperceptível pela parede abaixo, ante a algazarra anárquica instalada na sala de espera do centro de saúde. Novos, velhos e assim-assim, exibiam com orgulho bacoco e ruidoso, chagas, fístulas, feridas infectadas e outras enfermidades constantes dos alfarrábios clínicos, como condecorações de guerra de uma vida esgotada, com esforço, numa olimpíada masoquista repartida em retalhos e privações entre a Sueca no jardim e as filas intermináveis, em pé, sobre joanetes inflamados, à cata do primeiro prémio da lotaria de consultas. De um lado, uma conformada brigada do reumático onde soldados sem brazão no apelido ou homem de peso à beira da pia baptismal remexiam, com irritante insistência, na sacaria repleta de embalagens vazias de analgésicos e ampolas esmolando assinatura e vinheta do sotôr na receita. Do outro, uma exaurida plebe de classe média empregada por conta de outrém, irrequieta, prisioneira do crochet nervoso e miudinho, da fofoca de novela e do quotidianozinho semeado de injustiças, esgravatando no divórcio frequente das vedetas ou na maldade da besta da professora da Nini do quinto esquerdo da travessa que a tomara de ponta, embirrara com ela e insistia em dar-lhe más notas preparando-se para lhe oferecer uma raposa mais que certa. Alguns miúdos espojavam-se no chão numa descontraída gritaria para desjejuar do fastio das horas de cárcere involuntário na sala. O Sotôr, de nervos em franja, arrepanhava a melena por entre relatórios e credenciais, mal dormido pelo peso do enfeite com que o presenteara a namorada que, apesar de vestir mal de cara se evidenciava em intermináveis jogos de cintura que, afinal andava distribuindo de forma generosa, por seara alheia. Mais pelo peso do ruído do que pela força do ciúme, num assomo de ira, abriu a porta do gabinete de rompante e, rubicundo, vomitou-se em berros e imprecações exigindo silêncio:

- Se torno a ouvir uma mosca, um verme ou uma lesma rastejando no mosaico vou-me embora, não dou mais consultas hoje e não há receitas pra ninguém!
Enfiou-se para dentro fechando a porta com enfadado estrondo.
A placa não resistiu ao apelo das leis da física e estatelou-se no chão desagregando-se , com o impacto, em parcelas de composição molecular.
E então fez-se silêncio…


O SILÊNCIO - III


No princípio, apenas o verbo, lento, sorrateiro, conjugado no verbo amar insinuando-se aos pedaços. Logo a seguir a paixão, tomando forma escrita na espera transformada em desejo dos corpos nus, em pé, contra a parede, consumindo-se em silêncio…



OS SEGREDOS DA COZINHEIRA



Não podíamos deixar passar em claro esta “pérola” decoberta no “Mestre Cozinheiro”, uma décima edição datada, algures, dos anos noventa e que, anacronicamente, manteve em edição o texto que se segue. Da esposa linda, limpa e asseada, à pega fora do lugar ou ao cuidado para não verter gotinhas da tampa da panela nos ladrilhos, o texto é uma preciosidade de clichés e anacronismos sobre uma certa imagem da mulher pronta para servir o marido e convenientemente vestida para receber os amigos com galanteria... Aqui fica o desafio para rirem a bandeiras despregadas ou, pelo contrário, acharem que, realmente, é este o seu lugar...Está lançado o mote para a discussão e debate... Força!

OS SEGREDOS DA COZINHEIRA

Nenhuma senhora, ciosa da sua própria aparência física, e, também zelosa da boa harmonia conjugal sob os seus múltiplos aspectos deve descurar o seu vestuário dentro de casa, e principalmente na cozinha, onde a sua acção é preciosa.
      O marido, quando chega a casa, aprecia ver a esposa limpa e arranjada. É bem conhecida a gota de água que faz transbordar o vaso. Uma pega que não está como deve ser, uma nódoa, um aspecto desmazelado, ofendem, não só os olhos mas, o que é mais grave, o coração. Todas as mulheres devem meditar nesses problemas caseiros, que por vezes assumem carácter desagradável. O marido entrando em casa, gosta de ver a esposa radiosa, fresca, com um vestido impecável e um gracioso avental posto como resguardo e emprestando ao conjunto certa graça, particularmente atraente.
      Conta-se até, a propósito, uma queixa de certo marido. Dizia ele: “Encontrei uma linda rapariga, limpa, asseada, cuidadosamente penteada, e discretamente vestida. Gostei e casei com ela. Um ano mais tarde, quando entrava em casa, comecei a encontrar uma mulher descuidada que durante o dia, tratou das suas ocupações de dona de casa, permanecendo enfarpelada com um vestido enxovalhado e com um avental mal posto, sem feitio e sem forma. Experimentei com doçura fazer-lhe sentir a minha desaprovação”, ao que ela replicou num tom de ofendida: “ O que queres: não se pode ao mesmo tempo tratar do governo da casa e conservar a aparência de uma senhora”.
        Não há dúvida, que este marido é quem tinha inteira razão. Há que sermos não só senhoras, mas também muito femininas, dentro da nossa casa. Isso predispõe bem aqueles que nos rodeiam. Na cozinha, manter uma aparência de frescura é um segredo notável.
        O problema do vestuário da mulher em casa, tem até sido estudado por pessoas especializadas no género. Os vestidos de trazer por casa devem ser tecidos sólidos, resistentes e duráveis. Coloridos, frescos e agradáveis à vista. Os aventais poderão ser em tecidos claros, luminosos, às riscas, em escocês, com flores, com pintinhas ou às barras. E assim, convenientemente vestida, a mulher poderá estar na cozinha e receber os seus íntimos com extrema galanteria. (…) Quando se destapa uma panela, ter o cuidado de não espalhar nos ladrilhos as gotinhas que recobrem o interior da tampa….

10ª edição
Editorial Lavores
Agência peninsular
Avenida da igreja, 68, 1º dtº

DORMIR




A estrada estendia-se à sua frente, lenta, vazia, a deixar-se tomar de curvas com o verão a esgueirar-se de fininho em final de tarde, breve, como breves eram as palavras e o tempo a amaciar a melancolia suspensa da certeza  milimétrica de que o céu era sempre azul e que à noite se enchia de estrelas. Os dias são o que fazemos deles, e ele sem jeito para domador, alinhando na inércia com que os deixava tomar o freio no vazio da consciência em exílio absoluto escondendo-se na desconcertante imutabilidade do mundo.
Adivinhava-lhe o cheiro gravado na pele,  os gestos, as mãos finas de dedos esguios a enrolar-lhe o cabelo  com carinho, insistência e outras coisas que o coração sussurrava  e o corpo não esquecia...
Sempre desprezara os caprichos do tempo, marcas, dores ou achaques da idade. Quase não dormia, dormir era morrer um pouco no travesseiro, sobrando-lhe, assim,tempo para recordar. Por isso naquele final de tarde pegara no carro para uma viagem sem sentido ou à procura dele. Prego a fundo, uma dose de amnésia e duas de desapego , cavaleiro do asfalto em demanda da rainha  sem saber onde desenbocava aquela harmonia, as luzes e os murmúrios que ouvia agora.
Afivelara um sorriso amarelo mal a vira. – És bela! Imaginava-te de capuz e segadeira… Não terás vindo cedo demais para me levar?
- Sou capaz!... Se calhar distraí-me, mas já que cá estou…
- Deixem passar! Afastem-se por favor! – Maqueiros e paramédicos furavam pela multidão para chegar com rapidez ao local do acidente.
 Sentia-lhe ainda o cheiro, as carícias e o beijo a escorregar até ao seu gosto… Entreabriu os olhos e apercebeu-se dos pontinhos brilhantes entretidos a acender o céu, estirou-se com dificudade entre o lençol apertado  e afundou a cabeça no travesseiro… 

quarta-feira, 4 de julho de 2012

PRÉMIO LITERÁRIO FNAC


700 participantes e 10 textos escolhidos por um júri constituído por Valter Hugo Mãe, Doris Graça Dias e Carlos da Veiga Ferreira. O meu conto, Fashion Heroine,  está a concurso no site da FNAC  com vista à publicação até 12 de Agosto. Basta seguir o link e votar... Ou seguir as instruções: Site FNAC / cultura fnac / novos talentos literatura/ comece a votar/ escolher conto/ colocar nome, mail,data de nascimento e cidade e validar no final da página. Cada endereço de e-mail pode validar um voto uma única vez.

http://www.novostalentosfnac.com/literatura/2012/user/create?postId=4

EPÍSTOLAS

William Whitaker
Longo, o pedaço em que concedi licença sem vencimento à consciência e à vontade. Num “ (…)país de marinheiros a navegar nas águas insonsas da subserviência” nem a má companhia do Lobo Antunes me diluiu a inércia e a omissão. Só as  palavras nos salvaram, laboriosamente esculpidas ou, simplesmente, acocoradas, à laia de pedreiro, a partir pedra , num futuro enviesado e matreiro, abrindo caminho à poética do sobressalto.
 “Animula Vagula Blandula”…  Esta sim, a par com a tua, uma excelente companhia pela memória, pela delicadeza, pela “tendresse jolie et doux” com que a tua existência me premeia. Não nos vemos e sinto-te por perto, não falamos e oiço-te em silêncio.
Porventura, não vão as nossas cartas beijar a luz do dia com a têmpera das incetetezas de Adriano nem passear-se nos corredores vetustos de L’Academie, acima de tudo é pelo desejo e pela necessidade , mais pelo desejo da necessidade de  moldar, na plasticidade da palavra, o teu sorriso terno e franco , a firmeza com que escondes as fragilidades, o coração, ainda e sempre, adolesecente, a escorrer da boca e guardar tudo num ponto parágrafo docemente infinito, que te escrevo.
- Impossível! – Disse o orgulho.
- É arriscado! – Disse a experiência.
- Não faz sentido! – Disse a razão.
- Tenta-o! – Sussurrou o coração…

E assim, necessariamente, sussurro-te…

EL GUÉS - LAS PAMPAS EN LISBOA

Foi ao volante do velhinho décimo primeiro ano, sem jantes de liga leve nem direcção assistida que, com as manobras de apoio do velho professor de Português, aprendi a ouvir e partilhar histórias. E porque uma história bem contada é um bálsamo para a alma que devemos partilhar com o vizinho para prevenir a virose da mente,  deixo-vos a narrativa de "El Portugués"

Sebastião Afonso partira cedo a ganhar o mundo à procura da cidadania Socrática e do verdadeiro espírio filosófico. Afonso por parte do pai, que lhe vaticinava bons augúrios de rei descendente de nobre linhagem e Sebastião por parte da mãe pela materialização de um desejo pedido em dia de nevoeiro, cansado dos xistos, da miséria e da fome, e, dado que a noite se mantém calada na companhia das estrelas, fugiu por ela a dentro depois de mais uma sessão de bebedeira cozida a paulada nos costados. Por entre colcheias e semibreves de Beatles e Rolling Stones tão em voga à época, chegara, após várias peripécias, ao El Dorado sonhando com rios de prata e refeições quentes no estômago... Perdeu-se de amor pelas Pampas. Mares de erva húmida e verdejante, terra plana onde perdia a vista só a rencontrando semanas depois, toneladas de gado manso em liberdade... tão diferente dos xistos, das escarpas e das oliveiras mortas de sede das beiras. Sebastião Afonso enamorou-pelas terras, perdeu a sua virgindade num primeiro amor de entrega total e inconsequente... Os anos passaram e, entre a condução do gado e trabalhos vários que lhe grangearam fama e dinheiro, Sebastião Afonso amealhou um bom pecúlio que lhe permitiu abir uma venda... a "Tienda d'el Portugés"... fosse pela dificuldade fonética, fosse pelo carinho, a mudança do nome foi um passo tão curto como a redução da palavra: chamavam-lhe a "Tienda d'el Gués". Os anos iam passando, os negócios e a fortuna tinham criado vinculos de familiaridade muito próxima. Sobrava-lhe tempo para desfrutar da beleza ímpar das Pampas. Passava dias a percorrer as fazendas montado no seu corcel malhado de crina branca na companhia do mar de erva e do sol de cristal, de peito aberto, erguia-se ao vento gritando numa alegria infantil: "El Gués!! Sou El Gués"... Embora a liberdade de movimento e a beleza das Pampas fosse o número premiado na lotaria da sua vida, tinha investido toda a sua fortuna na Argentina e em Portugal, o regresso a Portugal, agora que lhe tinham diagnosticado doença má... afigurava-se para breve... Às nove da manhã de uma segunda-feira negra e obscura, atendera o telefone...era o gerente da agência bancária... a vista turva, a nausea galopante e o desfalecimento rápido só lhe permitiram perceber as últimas frases..." A Argentina entrara em banca-rota...o seu dinheiro estava investido na totalidade em hedge funds... os mercados caíram em perdas irrecuperáveis..."
Paralelamente, o dinheiro que em Portugal tinha entrege a um gestor de negócios evapora-se a trás do dito... de degrau em degrau numa cadeia ascendente de infortúnios, o fio descarnara sob a forma de um coágulo e o curto circuito fôra rápido e indolor... nunca mais ficara o mesmo... passava, desde o regresso, a galopar pelas ruas da baixa em trajes andrajosos dizendo coisas sem nexo, varejando o ar como se conduzisse milhares de cabeças de gado invisíveis, urros inempestivos e gritos: El Gues El Gués!! que assustavam turistas e transeuntes... O vão de escada era o seu abrigo... a rua era a sua fazenda...
- Deixem passar por favor! - A voz firme do paramédico não deixava margem para dúvidas...
Afastei-me para deixar passar a maca onde se vislumbrava um amontoado de cobertores rotos e encardidos enrolados no que parecia ser um corpo...A meu lado o velhote informava os passantes:
- Era o El gués...o gajo foi emigrante na Argentina...perdeu o dinheiro... foi roubado... e deu em maluco coitado... Deus o tenha em descanso...
Não me contive... com delicadeza peguei-lhe no braço virei-o e disse-lhe:
- Não morreu nada! A esta hora anda a percorrer as Pampas de peito aberto, montado no seu corcel malhado de crina branca sobre o mar de erva verde e húmida e um sol de cristal...

TRANSPARÊNCIAS II


Era refugiado na transparência do olhar, debelando uma timidez à distância a que não resistia ao vivo, concordando às escondidas como se fazê-lo de outra forma fosse uma afronta, que percebera ser a sua vida feita de pretéritos e memórias. Ácidas umas, doces as outras, por vezes era na noite fresca com míngua de chuva e um quarto de lua que, lenta e suavemente, regressava às palavras. Amavam-se por palavras. Mais que perseguidos eram empurrados por elas . Ganhavam contornos de fino recorte iterário que apelavam aos sentidos de uma forma tão física quanto o permitia a metáfora colada à alma com a pontuação  dedilhando borboletas no estômago.   E assim, trazidas pela brisa suave ou em caixas de letras, as palavras respiravam por perto, lembrando-lhe que era na generosidade e na entrega sem pausas, elos únicos, francos e irretocáveis que a vida se tornava tão fácil, no momento em que elas os levavam para lá do céu com o arco-iris e o mundo inteiro lá dentro…

TRANSPARÊNCIAS I

            (...) 
Nua, encostada à parede, de pernas abertas, ligeiramente flectidas, dedilhando as pregas do sexo com a perícia sincopada de um pianista, afundava  o dedo médio e o indicador e transportava-os até à superfície humedecendo a entrada enquanto a sua mão esquerda comprimia,  ao de leve, os seios. Ansiava tê-lo ali, já, em permanência, desfrutando do seu prazer. O ritmo do toque acelerou-se mal sentiu a chave na porta. Lá fora chovia com uma intensidade digna de filme e ele, encharcado e a tiritar de frio, olhou-a e, de imediato, se desembaraçou do casaco, do qual, segurava ainda com uma lassidão morna, as abas e um destroço de guarda-chuva. Tirou a camisa e deixou-se tombar de joelhos diante do seu sexo. Apoiou-se lhe nas pernas, ligeiramente acima do joelho estendeu a língua e começou um lento percurso de carícias  pelas coxas, titilando, ao de leve o clíoris. Ela cravou-lhe as mãos na nuca empurrando-o, com firmeza, para o sexo que  entreabria  em flor
saudando a chegada das manhãs de Abril.
- És meu! – Sussurrou-lhe ela.
- Seeempree… -  Anuiu ele..
Puxou-lhe o cabelo para trás despegando-o de si. Introduziu o dedo médio e o indicador,  alguns segundos, dentro do aveludado húmido do sexo  não se coibindo de lhe enterrar os dedos na boca para que ele se inbriasse com o seu perfume adocicado. Empurrou-o de novo, com ligeireza. Ele, dexou-se cair  e deitou-se no chão em câmera lenta, ela ajoelhou-se  e puxou-lhe as calças molhadas e as boxers. A língua dela descobria, agora, um carreiro  até ao interior das suas pernas sentindo  na face a carícia do sexo entumescido. Não resistiu: provou-o … Uma e outra vez... E estendeu-lhe os lábios para um beijo de partilha e volúpia.Deixou descair as ancas e num espasmo arregalou os olhos mal o sentiu entrar. Começou então um lento vai-vem entrelaçando os dedos nos dele com os nós apoiados no chão. O movimento tornara-se mais rápido e insistente. Consumiam-se na transparência fluida do olhar onde cabia o arco-íris e o mundo inteiro lá dentro  (...). A fricção tomara uma cadência frenética só parando no estremeção e no murmúrio imperceptível dos sons guturais até se sentir inundada de prazer. Ela oferecera-se com generosidade, ele entregara-se sem obstáculo.  (...) ele estranhava-lhe o silêncio. Ela, para quem as palavras eram supérfluas quando a certeza era firme e esta se manifestava no movimento  do corpo em tradução livre do desejo, sorria-lhe encontrando, finalmente, não aquilo que procurava, mas aquilo que os fazia felizes…

segunda-feira, 2 de julho de 2012

ENTREVISTA COM PAULO MOREIRAS

Mini-entrevista a Paulo Moreiras onde poderemos ficar a conhecer melhor um homem culto, afável e que, generosamente, acedeu ao nosso pedido. Após uma breve biografia oficial, aqui ficam algumas linhas trocadas sobre a sua obra e a sua visão da escrita num tom sereno e grande riqueza vocabular.
Nasceu em Agosto de 1969, em Lourenço Marques, Moçambique. Arribou a Portugal em 1974. Viveu no Douro, passou por Almada e vive agora em Meirinhas, perto de Pombal. Em 1996 publicou como argumentista “Hermínio, Regresso a Portucale”, em parceria com o desenhador Victor Borges. Em 1999 foi-lhe atribuída uma Bolsa de Criação Literária na modalidade de Narrativa. Entre Agosto de 2000 e Agosto de 2001 foi o coordenador do destacável cultural “Viver”, do semanário Jornal de Leiria, tendo colaborado também nos semanários O Correio de Pombal, Tribuna do Oeste, Região de Cister e no mensário Jornal das Cortes, neste último com prosa e poesia. Publicou o romance A Demanda de Dom Fuas Bragatela e, mais recentemente, Os dias de Saturno.
Caro Luís Bento,

Obrigado também pelo convite de figurar na sua galeria de entrevistados.

Aqui ficam as minhas respostas, desejando que correspondam às suas expectativas.

Um abraço,

Paulo Moreiras
 
1 - Se passarmos em revista alguns dos seus títulos: “Elogio da Ginja, o B.I. do tremoço ou o B.I. da Morcela ", escorregamos suavemente para a temática da gastronomia. De que forma, e como descobriu ter a gastronomia lastro para desenvolvimentos literários?
Por pura curiosidade, facto aliás que já carrego comigo desde a infância. Tive o privilégio de ter vivido numa pequena aldeia nas margens do Douro, quando vim de Moçambique, e de ter andado à descoberta dos inúmeros frutos que existiam nas terras da minha avó e dos meus tios. Parecia um Tom Sawyer, descalço, a correr pelos campos, a subir às árvores e a comer toda a espécie de frutos enquanto via os comboios ou os barcos a passarem. Junte-se a tudo isto a enorme riqueza gastronómica que degustei então, a broa acabada de sair do forno regada com azeite, as vindimas e as "buchas" comidas de permeio durante a jorna. Uma maravilha. Essas memórias levaram-me sempre a saber mais sobre os alimentos, as práticas culinárias e as tradições associadas. Infelizmente em Portugal não existe muita investigação sobre estes temas, comparativamente com outros países. Aos poucos fui satisfazendo as minhas curiosidades com estes pequenos trabalhos. Mas ainda há muito para fazer, tanto mais que a Gastronomia Portuguesa faz parte do nosso património cultural desde 2000 e há um conjunto de práticas que não podem, nem devem, cair no esquecimento.
 
2 – Em “ A Demanda de D. Fuas Bragatela” o herói (ou anti-herói) “arrasta-nos, ora por estradas reais, ora por semideiros escusos, em demanda de um dos mais importantes tesouros da Cristandade.” Tendo em conta este seu romance e olhando para a nossa história, poderemos concluir ser esta a génese da alma lusa? Andar em Demanda de qualquer coisa?
Esse é o nosso fado e o nosso destino. As demandas que todos carregamos servem para nos levar mais longe, arriscando, inovando, preenchendo-nos. Assim se constrói a nossa vida e o nosso património, as nossas memórias. O problema surge quando não sabemos bem definir as demandas que nos movem; por vezes vamos em busca de algo e dificilmente percebemos que o caminho é mais interessante do que o fim em si próprio. É como a vida ou como o amor.
3 – “Os Dias de Saturno”, situa-se no século XVIII num período de grandes transformações sociais e de significativos avanços científicos e intelectuais. E estes nossos novos tempos? Serão terreno fértil para inventar ou reinventar a escrita?

Felizmente a Literatura é um fértil alfobre onde ainda há espaço para invenções e reinvenções. A nossa língua permite tudo isso, seja pela incorporação de novos hábitos sociais, seja pela apreensão de novos vocábulos. O mundo está em constante mudança, assim como a nossa Língua. Tudo isto permite novas abordagens, por vezes bem sucedidas, outras nem tanto. O facto de estarmos a viver algumas transformações referentes ao modo como lemos - o caso do ebooks - irá fazer com que a escrita também sofra modificações, pois os canais também eles estão a mudar a forma como encaramos o livro enquanto objecto. São questões interessantes a que devemos ficar atentos.

4 – Como encara o processo criativo? Tendo em conta que se debruça sobre o romance histórico, com o cuidado a ter nos ambientes, no vestuário, no cuidado da linguagem e na pesquisa aturada, encara-o como um processo extenuante, absorvente e com uma forte componente de risco ou, pelo contrário, um processo natural onde o imaginário lhe flui com simplicidade?
 
É difícil falar sobre o meu processo criativo pois eu próprio nem sei às vezes como as coisas acontecem. Não é uma questão de inspiração, mas sim de muito trabalho. É um conjunto de complicações que se encadeiam desde a ideia original até à sua conclusão. Como referi, tenho muita curiosidade sobre determinados temas e isso leva-me a fazer pesquisas aturadas, mas gosto desse processo. Não direi que é extenuante porque me dá muito prazer. Gosto de aprender, de saber. Depois, durante esse processo, deixo o meu espírito criativo divagar e fico aberto a novas ideias que surgem, muitas vezes, quando encontro uma palavra, uma simples palavra usada nesses tempos de antanho. Fico fascinado pelas palavras, pelos seus significados e pelas imagens que elas proporcionam quando lidas. Umas conferem um ritmo e uma malícia interessante ao texto e isso agrada-me bastante. Existe um grande componente de risco, por isso demoro muito tempo a escrever. Tenho de sentir essas palavras, ter um conhecimento profundo sobre a época que vou trabalhar. A maior parte das vezes não uso a totalidade das minhas informações, não são precisas para o romance, mas tenho de as sentir na minha cabeça. Tenho escolhido criar romances históricos porque me possibilitam um certo imaginário, como se a distância temporal permitisse certas veleidades criativas e romanescas. Além disso, os meus romances, apesar de históricos, são sempre sobre os invisíveis da História, aqueles que não figuram nos livros. Depois de ter feito a investigação, deixo tudo a marinar na minha cabeça e a trama vai urdindo-se, paulatinamente e então começo a escrever. Por vezes tudo muda, as ideias alteram-se e o romance segue outro caminho, surpreendendo-me, na maior parte das vezes, para melhor. No fim de cada livro fico vazio, como uma garrafa e depois lá começo a encher a vasilha que se segue.

5 – “Os Dias de Saturno” a fazer jus à crítica comummente aceite, é “um romance fascinante sobre o amor e a sua impossibilidade, com doses iguais de humor e dramatismo”. É o amor assim tão impossível? Não deveria ser, à semelhança da escrita, uma reinvenção diária? Não deveria ser essa a nossa… Demanda?

Sou um homem apaixonado e sempre acreditei no amor. Pode parecer impossível à partida, mas o caminho a percorrer é frutuoso. Para isso, para ele se concretizar, o amor deve ser uma reinvenção diária pois não é fácil construí-lo e mantê-lo. Curiosamente, quando escrevi "A Demanda de D. Fuas Bragatela", a demanda do meu personagem, no princípio, era uma questão material, mas depois, durante o processo de escrita, ele seguiu por outro caminho, como na letra Pitagórica (Y), acabando por descobrir o amor. No final, essa era a sua demanda e a de todos nós. No romance em que estou a trabalhar a questão da impossibilidade do amor também se coloca, mas não foi uma situação pensada. Acabou por surgir no decorrer do processo. Ou seja, ando sempre a escrever à volta do mesmo...

domingo, 1 de julho de 2012

PRENDA DA MADRUGADA



Por vezes, o escriba perde o pio… Longas e penosas temporadas sem ouvir o trinado das palavras. Fosse ele siciliano e há muito que estariam a fazer parte da composição molecular do betão armado, mas não… anos de carga cultural judaico-cristã, amparada no encosto terno e sábio da experiência do avô materno a vergar-lhe o dorso , não lho permitiriam. “Isto é como as ovelhas… é deixá-las ir que quando tiverem fomeca regressam! Até se encavalitam umas nas outras!” E voltaram… um emaranhado de hieróglifos confuso na sintaxe, mas prenhe na sensibilidade e no sentido… E assim, nas entrelinhas da noite cerrada, deu-se um click … Uma prenda da madrugada…

Por mais que ele puxasse as baínhas à memória não encontrava a costura onde se perdera da paixão. Fosse por míngua de alimento, fosse por ausência de palavra, o certo é que, escudado na sabedoria paterna que bastas vezes lhe zurzira, com firmeza, ser a poesia um bálsmo para a alma, mas fraco aconchego para o estômago, a deixara morrer em lume brando acabando por lhe fazer o funeral ao longo de uma vida de trabalho árduo e de apetites saciados em relações sem corda ou baraço de tamanho suficiente para o compromisso. Ganhara o estômago numa luta desigual com o dicionário dos afectos…

Ela, por sua vez, adormecida numa quietude morna e constante, sem sobressaltos, habituada ao quotidiano novelesco iniciado, bem cedo, à porta de casa e a terminar já com o sol entretido a desenhar geometria na sombra dos muros de reboco mal acabado, doce, sensível, embrulhada numa aparente fragilidade, de olhar a um tempo sereno e forte, buscava uma melodia afinada no seio da paixão que ,ao invés de pernoitar, residisse em permanência naquela assoalhada vaga no coração.

Magnânimo e omnipresente, talvez por distracção ou experiência, o destino dera-lhes uma prenda. Tropeçaram um no outro numa química em efeverscência e sem manual de instruções. Os corpos, nus, moldados numa forma única, consumiam-se num movimento lânguido e lento , através dos cabelos dela escorregando teimosamente por entre os dedos dele que, de olhos bem abertos, se deliciara com o gemido rouco e profundo com que ela lhe acariciara os lábios . A lua a estender-se pelo céu com uma dormência dolente e preguiçosa e o relógio a encher-se de horas e eles, de mãos dadas, experimentando num último estertor de prazer, um sorriso amplo e afogueado a iluminar a face de ambos.

Ele, cogitando de olhos no tecto, percebera que não precisava mais de puxar as baínhas à memória. Ela, estranhando-lhe o silêncio, não resistiu à pergunta:

- E tu? Em que pensas?

Dominado ainda por uma réstea de calor, fez uma pausa, inspirou fundo e, de sorriso nos lábios, perguntou-lhe por sua vez:

- E tu? Sabes o que é amar?

Ela, sem ponta de espanto, sorriu, recordou as palavras doces da mãe que, com uma paciência ilimitada lhe saciava a curiosidade desconcertante da idade dos porquês, aninhou-se-lhe no peito , atirando-lhe num sussurro:

- Amar? Amar…É gostar de ti com muita força…

LETRA M... DE... MAIS...




Metera-se a caminho do Porto rolando em velocidade excessiva no atapetado do asfalto. Mais do que a compra da casa foram os traços finos e elegantes, que lhe divisara nos bytes da net percorrida a fio e insistência, que o levavam em busca daquele olhar forte e perturbador que, aos quarenta o mantinha em suspenso, preso daqueles quarenta debruados a quilates prenhes duma sensualidade acanhada..

Chegara cinco minutos antes da hora marcada aos escritórios da imobiliária. Dera com ela sentada na secretária de saia e casaco pretos, camisa adivinhando formas na sua transparência, uns sapatos de salto agulha, lábios rasgados e finos, nariz direito, cabelos longos, soltos num volume selvagem e aquele olhar felino onde, de imediato desejara perder-se no verde das suas sete vidas. Aproximou-se com um cumprimento de mão leve sentindo-lhe o aveludado e o tremor expontâneo. Olhos nos olhos, balbuciaram cumprimentos a rodos e sorrisos a destempero. Finalmente, ela retirara a mão, compondo o casaco deixando a descoberto parte da alvura redonda e firme de um seio desamparado e atractivo. Sentira-lhe o suspiro inflando de impaciencia e excitação. A química não se confinava aos tubos de ensaio das aulas de liceu. A reacção em cadeia dera-se ali mesmo, em catadupas de odor, olhares e respiração em códigos trocados no esboçar de sílabas alinhavadas a silêncio.

De mãos dadas, voaram numa vertigem estancada à porta da moradia com a placa “VENDE-SE”. Mal entraram no hall, ele não se conteve e, pegando-lhe no pulso, fê-la rodopiar até ficar de frente para si, acto contínuo, empurrou-a contra a parede nua, prendendo-lhe os pulsos. Por entre pastas, papeis e documentos espalhados nas lajes, esmagou os seus lábios finos e rasgados com um beijo longo e quente, ao mesmo tempo que comprimia o seu corpo , meneando-se de forma a sentir-lhe o sexo. Generoso e faminto, o corpo dela oferceu-se ao movimento libidinoso deixando-se prender, desta feita, pela face, nas suas mãos nodosas e másculas. Ávidos, os lábios não encontravam o fim num beijo cada vez mais longo, quente e húmido que abriam, agora, passagem a uma língua exploradora que encontrara companhia e se deixara enlaçar num turbilhão de fluidos e desejo. Ela mordiscava-lhe agora os lábios repuxando-os de olhos fitos nos dele. Matreira, a mão masculina desceu com um vagar anunciado , de forma possessiva e penetrante, em direcção ao sexo dela comprimindo-o e acariciando-o. Ela retirou-lhe a mão e obrigou-o a enlaçá-la pela cintura. Teimoso, por entre beijos afoitos e distraídos acariciou-lhe o ventre passeando com mão até aos seios roçando, ao de leve, um dos mamilos. A um tempo subiram as escadas em direcção ao quarto num compasso de ânsia. Abraçou-a pelas costas tirando-lhe o casaco à força de beijos e caricias no pescoço. A mão direita dele, teimosamente acariciava, de novo, o sexo dela e de novo rechaçada com suavidade. Foi a vez dela. Virou-se cobrindo o seu peito de lábios excessivos por centímetro quadrado de pele. Ele, rendido e perdido nas vagas daquela maré de olhar verde e felino, empurrou-a para cima da cama e deixando cair todo o peso do seu corpo num desfalecimento embevecido, puxou-lhe as abas da camisa fazendo saltar os botões, passando a mão direita, num gesto de destreza, pelo fecho do soutien. Os seios, agora desnudados e com a pele arrepiada surgiam, alvos e puros, oferecendo-se generosamente aos seus lábios. Não se fizera rogado.Iniciara uma doce tortura com a sua língua deixando um rasto húmido de desejo ante o seu tórax que se arqueava e arrepiava, a língua dançava sobre os mamilos túrgidos, duros e ansiosos, do beijo e da sucção. Começou por mordiscá-los rodando os maxilares o que provocou um frémito pelo seu corpo. Sugou-os, sentia-lhe o arfar, a respiração pesada e as suas unhas cravadas no cabelo. Desceu então, lentamente, em direcção ao ventre, novamente deixando um sulco brilhante e quente. Puxou-lhe a saia,alçou-lhe as pernas apoiando-as nos seus ombros. Puxou-lhe, com uma lentidão lasciva e calculda, os slips enquanto lhe beijava a face visível das pernas junto aos seus lábios. Iniciou então um percurso exploratório em sentido ascendente. Sem lhe retirar os sapatos de salto alto, beijou-lhe os dedos dos pés demorando-se um pouco, depois o peito do pé onde a sua língua fez novas acrobacias. Ajoelhou-se diante dela e ergeu-lhe as pernas ao nivel dos joelhos. A língua subiu arrastadamente pela zona interior das pernas em direcção às sua coxas. Ela fincava-lha as unhas no cabelo puxando-lhe a cabeça em direcção ao sexo. Em menos de nada os seus dedos afastavam as pregas do sexo que se oferecia generoso e húmido ao seu olhar faminto e ao seu desejo. Penetrou- com a língua, demoradamente, sentiu-lhe o estertor as coxas que o apertaram repentinamente e o gemido rouco que vinha lá de longe do mais fundo do seu prazer. Ela puxou-o pelos ombros exigiu-lhe o beijo sentindo o odor e o travo agridoce do seu sexo. Demoraram-se num beijo apaixonado, e então ela girou o corpo e ficou sobre ele. Prendeu-lhe os pulsos e deixou-se inclinar de modo a facilitar a entrada do seu sexo. Iniciando um vaivém ritmado, sincopado cada vez mais ávido e célere. Atingiram o clímax em uníssono, conjugado de forma activa a duas vozes. Ela deixou-se cair sobre o seu corpo, aninhando-se sobre o seu peito de respiração ofegante enquanto ele brincava com os seus cabelos longos…


Ela saía do banho e ele, docemente estático, apareceu-lhe à frente, de toalha estendida, abraçando-a com carinho. Ficaram assim uns minutos alheados do mundo que lá fora girava nos compêndios de geografia. Afastou-se dele, antecipando despedidas ou dificuldades numa autoestrada que se lhes atravessava no caminho. Sabendo que morava em Lisboa, quis saber as linhas com que se iria coser aquele fato novo, mantendo a esperança num amor sem interrupções. Num tom grave e inquisidor perguntou-lhe:


- E tu…Voltas?

Deixando-se cair exausto e feliz sobre a cama e de olhos brilhantes fitos nos seus, respondeu-lhe com paixão:
- Não… Fico!!

SENTIR-SE EM CASA



Castelo Branco, ferrarias, interior profundo de Portugal 1964,


A mãe berrava em tons agudos que espantavam os animais no palheiro. Epidural era um termo que distava trinta anos de calendário. Ia tê-la ali, naquela cama desconchavada com uma malga de água quente e a ajuda de duas vizinhas com mais buço que dentes na boca. Bébé no mundo, cordão cortado com tesoura romba e de pontas ferrugentas, daquelas que serviam para tosquiar as ovelhas e pronto! Nascera!

Mal tivera tempo de abraçar a sua menina. A única frase de parabéns que ouvira do marido, seca e apressada ,prendia-se com a janta:

- “Vê se te alevantas! Tenho fome! Preciso comer e deitar cedo que amanhã vou pra trás do Tojal, bem cedo, ajudar o chico na Eira”…

E assim dera à estampa, a menina Olinda Botelho, no meio de uma caderneta amachucada com cromos amarelecidos. A mãe, finara-se semanas depois após luta desigual com uma infecção interna. Olinda fora recolhida por madrinhas, amigas, vizinhas, tios, primos e assim saltara os anos e a escola em casas alheias. Aos doze, o pai achou que estava em boa idade de trabalhar e assegurar a lida da casa. Fora a primeira vez que conhecera a sua casa… amontoado de xistos com reboco envergonhado, móveis a pedir licença pela inexistência, tectos de cozinha mascarrados e a pedir limpeza desde o Eça de Queiroz… não esmorecera…era a sua casa! Com o tempo tornou-se moça viçosa, roliça de carnes, prendada e esperta. O rol de qualidades despertara as vontades e cobiça do Manuel Zarolho.

“Quem casa quer casa”… pois… a muito custo deixara a casa paterna para viver com o marido. De início, encaixara na gaveta do esquecimento os modos ríspidos , a voz entaramelada e o hálito fétido do álcool, mas breve, breve, experimentaria a mão pesada do dono pelos motivos mais fúteis em ritmo cada vez mais intenso e constante. Farta do amor pautado pela lambada e insulto, entornou-se-lhe a água do caldeirão no dia em que, grávida de três meses, fora premiada com mais manifestações do seu carinho doméstico:

- E pára de choramingar! Dás-me azia no estômago! Vai mas é preparar a janta minha porca! Tás na minha casa... fazes como eu quero!

Não! Não era porca porque os bácoros comiam a tempo e horas eram bem tratados e não levavam paulada…

Manuel Zarolho fora ao palheiro, no alto do barranco mesmo a espreitar as margens do rio Ocresa, buscar feno para os animais. Olinda Botelho, toldada pela raiva e pelos anos de servilismo e impotência não pensou duas vezes: dirigiu-se à adega, levantou as sacas das cebolas e tirou a espingarda guardada debaixo do estrado. Rapidamente voltou à cozinha e, por detrás das latas amolgadas de farinha e arroz, sacou dois zagalotes da caixa de cartão que estava aberta. Desatou a correr na companhia de papoilas e calhaus e assim que o viu mesmo antes de chegar ao barranco gritou-lhe:

- Manuel! Ò Manuel! Olha pra mim malvado!.. que lá pró inferno que é pra onde tu vais…não te vais esquecer da minha cara!!

Um bando de pássaros debandou do alto da copa duns quantos pinheiros após o estrondo… Olinda pousou a espingarda junto ao corpo inerte e voltou para casa. Sentou-se no banquinho de cortiça e sacou dum bocado de pão, duma navalha e da chouriça cortada sobre o prato em cima da mesa. Aliviada, mais repousada, escorada na vingança e com o remorso a léguas de distância, comeu uma bucha de pão com chouriço e então sim… sentiu-se em casa…