Num país periférico e falido, moralmente coxo, atacado pelas associações, agremiações e partidos herdeiros do antigo corporativismo era - digo bem - Era nos políticos que depositávamos a esperança e a força necessária para transformar uma Pátria que vive dias cinzentos. Afinal, são os primeiros a dar o pior exemplo e a ceder à ambição desmesurada. Aguardemos ingenuamente que arrepiem caminho, sob pena de assistirmos ao degradante espectáculo de uma Assembleia da República transformada num mero Snack-bar" de pândegos de elite, a comer em faqueiros de prata...
Paulo Kellerman convida e coordena, nós damos a caneta e o
papel, depois é só juntar talento e os contos nascem. De 15 em 15 dias,
há ficção na Preguiça Magazine.
RAME-RAME
LUÍS BENTO
“Espero uma espécie de alma gémea do outro lado do texto”
Mário de Carvalho
Mário de Carvalho
Olho para trás com vontade de corrigir o passado e percebo que nos
habituamos a não ter sido. Se fechar os olhos, por instantes, fico a uma
distância segura da memória e do medo num universo que achava infinito e
renovável, espécie de física quântica ou de tijolos sobrepostos a
emparedar a nossa ingenuidade e pergunto-me se alguma vez estivemos
completos ou se passámos a vida a apanhar cacos desde a infância.
Pego no papel e lápis e procuro, nas palavras, encurtar o abismo que
nos separa, nesse cansaço de fim de tarde, sem conseguir explicar porque
ficou o coração apertado assim tão de repente e tão difícil de
decifrar. Sonho somar rugas, cicatrizes, marcas, lastro que o tempo
larga em dias mansos, perder os meus limites à espera do milagre, do fim
da novela, ou da Ressurreição no teu corpo. Estou sempre de partida e
sem destino, homem brando a levar a vida em banho-maria, a sentir o
corpo ausente, a desejar que o remorso fosse pedra para poder lançá-la e
aliviar a carga. Em sonhos, viajo para muitos lugares, para longe e
durante muito tempo e fico o mesmo, sem certezas geográficas, nomes ou
aritméticas. Assim eram os pássaros.
Toda a realidade se dissolve numa abstracção de Schiller ou Kant… E
depois fico assim, parado a meio do texto, sem ideias ou vontade, à
espera que ele se escreva sozinho. Fumo um cigarro e penso que o
universo é uma dialéctica entretida a subtrair coisas boas do teu
sorriso e a fazer-nos viver com a diferença. O dia não ajuda. Está frio e
cinzento, vai chover e não trouxe guarda-chuva. Oiço baixinho uma
música do Einaudi. Deixa-me assim no rame-rame de uma melancolia doce,
politicamente correcta, aceitável, se assim se poderá dizer. Certo é que
continuo sem produzir.
Olho para a frente e vejo que o céu está cheio de pássaros e percebo,
então, que ganho asas quando escrevo, que a moral da história está
naquele livro que nunca lemos, e que decifrar estas palavras é
repeti-las no tempo e no espaço, em que o amor é a nossa única
liberdade… E então procuro seguir a vida pelo lado de dentro fazendo as
curvas com cuidado. O desejo tem sempre muita pressa e eu gosto de
abrandar, de ver pelo avesso, de contar pelos dedos as vezes em que o
passado nos marcou a vontade ou a falta dela, a perda, o desleixo.
Fui-te remendo, pedaço, cola, nota de rodapé, derivação regressiva do
verbo amar… E isso já não me basta. Incomoda-me não ser eterno, não ter
certezas, não conhecer Marte, não acabar a nossa história com um
substantivo concreto. No movimento entre o barco e o cais, não somos nós
que partimos, é o mar que chega. Dispo, então, o meu melhor poema que
foste tu a sorrir a meu lado com cheiro de manhã. O silêncio é a nossa
deixa para seguir viagem. Do corpo não se guarda nada, apenas a memória
que sobra do momento em que o suor foi magia.