“ (…) numa época de crise, os setores da cultura vivem o pesadelo do afundamento de todos os modelos, e quando não há modelos avalizados nem avalizáveis não resta outra saída senão a utopia ou o cinismo, às vezes disfarçados de um pragmatismo disfarçado de eficácia histórica disfarçada da virtude da prudência.”
Manuel Vázquez Montalbán
Vem esta crónica a propósito da leitura de um conjunto de artigos na LER sobre a alegada decadência — ou crise — da ficção em Portugal. O tema regressa ciclicamente, como quem insiste em medir o pulso a um doente que ora parece febril, ora apenas entediado com os próprios sintomas.
Segundo dados recentes da APEL, em 2024 24% dos portugueses não leram um único livro.
Apenas 5% leram mais de dez. Entre os livros vendidos, só 25% são de ficção, quando em 2022 eram 38%. Os números não contam toda a história — mas contam uma parte suficiente para nos interrogarmos sobre o que, afinal, está a acontecer.
O argumento do “livro caro” é tão repetido que já perdeu elasticidade. Mais gasto ainda fica quando o contrapomos aos bilhetes de concertos e festivais de verão, esses sim, verdadeiras provas de esforço financeiro nacional. O país parece ter dinheiro para tudo o que seja barulhento, luminoso, partilhável em stories — e cada vez menos para a silenciosa lentidão de um livro.
Haverá também quem diga que somos herdeiros de uma brutalidade primitiva, descendentes directos das pelejas de Viriato, incapazes de nos demorarmos na leitura. É discurso de mesa de café, mas circula: a imagem tomou o lugar da palavra, a televisão e depois o telemóvel arrastaram a escrita para o rodapé da nossa atenção. Só que, paradoxalmente, nunca se escreveu tanto em Portugal. E nunca se publicaram tantos livros. É um país de autores à espera de leitores.
Talvez a explicação esteja menos na caricatura antropológica e mais na alteração profunda das rotinas. Os telemóveis deram-nos acesso a um fluxo contínuo de informação — rápida, truncada, instantânea. Primeiro vieram as SMS, depois o WhatsApp, e com elas a normalização da palavra comprimida, do pensamento abreviado, do tempo dividido em micro pedaços. Não é que não se leia: lê-se muito, mas lê-se curto, lê-se disperso, lê-se para chegar a outra coisa. O livro exige o contrário disso.
Não ajudará também um programa escolar que insiste em clássicos distantes de leitores demasiado jovens. Lêem-se obras importantes, sim, mas muitas vezes antes de tempo, num desfasamento que transforma a literatura em obrigação e raramente em descoberta. Por outro lado, os jovens que leem… leem em inglês, compram originais em inglês, vivem num ecossistema global de tendências que ignora a literatura portuguesa — não por desprezo, mas por ausência de visibilidade.
Há ainda um fosso entre o que se escreve e o que se procura. Uma parte dos autores portugueses continua presa a um cânone literário que, embora nobre, já não dialoga com a experiência quotidiana do leitor comum. Fala-se muito de existência, pouco do dia-a-dia. E a ficção, para sobreviver, precisa de “pessoas dentro”, não apenas de ideias.
Os provérbios populares também contam a sua história, essa sabedoria resignada que herdámos:
- “Livros cerrados não fazem letrados.”
- “Amigos e livros, poucos e bons.”
- “Mais vale ler um homem que dez livros.”
Há neles uma certa desconfiança em relação ao livro, uma exaltação da experiência directa. São ecos antigos, mas permanecem.
Temos, pois, um cenário curioso: uma oferta gigantesca de livros, um acesso fácil — físico e digital —, mais gente alfabetizada, mais plataformas a discutir literatura. E, no entanto, uma sensação generalizada de que se lê cada vez menos. Será exactamente assim? Ou lê-se de forma diferente? Talvez a leitura se tenha tornado mais fragmentada, mais intermitente, mais ansiosa. A informação que recebemos é demasiada, não necessariamente excessiva, mas constante, e a constância cansa.
A imagem, rápida e sedutora, ocupou o espaço onde antes morava o texto. E o tempo — esse recurso finito — está mais curto, ou parece mais curto. O futuro? Um povo que lê menos sabe menos, e um povo que sabe menos decide pior. Não é dramático dizê-lo; é apenas constatar o óbvio.
Talvez a crise da ficção não esteja na ficção, mas no país. Ou no ritmo a que vivemos. Ou na forma como fomos empurrados para um presente perpétuo onde tudo se consome, nada se demora e muito menos se relê.
A ficção portuguesa não está morta — mas está, como tantos de nós, a tentar respirar num mundo que respira depressa demais.

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