A entrevista com uma grande senhora das letras que muito nos honra com o seu brilho. Dona de um humor e energia invejáveis, sucinta, prática e concisa. "Amigo respostas curtas, que já não estamos em tempo de discursos".
Alice Vieira nasceu em Lisboa, em 1943. Nos anos 60 deixou-se levar pelo jornalismo – e nunca mais de lá saiu.
A partir de 1979, acumulou com a escrita de livros. Mais de 70, até hoje. Para crianças, para adolescentes, para adultos.
Muitas traduções por esse mundo fora, alguns prémios.
Mas continua a não saber nada, como não sabia ao princípio.
1 - O mundo, tal como o conhecemos, está em rápida desagregação, crise de valores, falta de solidariedade e com acentuado e excessivo incremento do poder financeiro. De que forma pode a literatura modificar ou alterar este estado de coisas ou qual o seu papel neste nosso novo mundo?
A literatura não muda coisa nenhuma. A literatura pode fazer de nós pessoas melhores – e isso é que é importante.
2 - A literatura e os seus suportes estão, também eles, em mudança assistindo à expansão dos suportes digitais em detrimento do velho papel. E o leitor actual? Mudou? Evoluiu? É mais exigente? Continua com sede de aprender ? Ou busca apenas entretenimento?
O mundo mudou, os leitores mudaram, todos nós mudámos. Mas os clássicos – em suporte papel ou digital – continuam a ser as nossa referências. Não sei, nem me importa saber, se o público evoluiu, se é mais exigente, se continua com sede de aprender ou só quer entretenimento (e porquê separar o “aprender” do “entretenimento”???). Sei que eu sou, como sempre fui, muito exigente e, ao mesmo tempo, muito egoísta: escrevo para mim, como eu acho que devo escrever. Se depois as pessoas me leem… ótimo. Mas nunca penso nelas à partida. (Não estou a falar dos livros para crianças muito pequenas, porque isso é outro departamento… Estou a falar de literatura.)
3 - Na sua actividade literária já percorreu todos os tipos de público. Juvenil, adulto, etc. Há muitas diferenças entre esses tipos de público? Qual o grau de exigência ou pontos de contacto?
Penso que já ficou respondido. O grau de exigência é o mesmo.
4 - Passando a sua obra em revista, qual a importância da memória e do quotidiano na sua escrita?
A memória e o quotidiano são o meu alimento. Sempre foram. Como jornalista, acho que nunca poderia ser de outra maneira
5 - Em Bica Escaldada reúne uma série de textos onde se vai impondo uma crónica de costumes da sociedade portuguesa das últimas décadas. À luz dessas histórias e dos tempos que vivemos sente que se perdeu a inocência, o humor, o interesse e preocupação pelo outro em detrimento de uma certa desilusão?
Essa de “estarmos desiludidos”, coitadinhos de nós, é uma ótima desculpa para não fazermos nada… E é evidente que não podemos cair em generalizações. As minhas crónicas da “Bica Escaldada” foram publicadas nos anos 80. Não há telemóveis, nem iPads, nem outras maravilhas fatais da nossa idade. Mas continuam a ser lidas hoje. Como acontece, por exemplo, com o “Chocolate à Chuva”, um romance que escrevi há 30 anos, e que continua, ainda hoje, a ser lido nas escolas…
O mal de muitos autores é quererem escrever para a posteridade... A gente sabe lá o que vai ser a posteridade… Escrever para nós, no nosso tempo, com grande rigor e com grande exigência é a única solução.