domingo, 15 de julho de 2012

DORMIR




A estrada estendia-se à sua frente, lenta, vazia, a deixar-se tomar de curvas com o verão a esgueirar-se de fininho em final de tarde, breve, como breves eram as palavras e o tempo a amaciar a melancolia suspensa da certeza  milimétrica de que o céu era sempre azul e que à noite se enchia de estrelas. Os dias são o que fazemos deles, e ele sem jeito para domador, alinhando na inércia com que os deixava tomar o freio no vazio da consciência em exílio absoluto escondendo-se na desconcertante imutabilidade do mundo.
Adivinhava-lhe o cheiro gravado na pele,  os gestos, as mãos finas de dedos esguios a enrolar-lhe o cabelo  com carinho, insistência e outras coisas que o coração sussurrava  e o corpo não esquecia...
Sempre desprezara os caprichos do tempo, marcas, dores ou achaques da idade. Quase não dormia, dormir era morrer um pouco no travesseiro, sobrando-lhe, assim,tempo para recordar. Por isso naquele final de tarde pegara no carro para uma viagem sem sentido ou à procura dele. Prego a fundo, uma dose de amnésia e duas de desapego , cavaleiro do asfalto em demanda da rainha  sem saber onde desenbocava aquela harmonia, as luzes e os murmúrios que ouvia agora.
Afivelara um sorriso amarelo mal a vira. – És bela! Imaginava-te de capuz e segadeira… Não terás vindo cedo demais para me levar?
- Sou capaz!... Se calhar distraí-me, mas já que cá estou…
- Deixem passar! Afastem-se por favor! – Maqueiros e paramédicos furavam pela multidão para chegar com rapidez ao local do acidente.
 Sentia-lhe ainda o cheiro, as carícias e o beijo a escorregar até ao seu gosto… Entreabriu os olhos e apercebeu-se dos pontinhos brilhantes entretidos a acender o céu, estirou-se com dificudade entre o lençol apertado  e afundou a cabeça no travesseiro… 

quarta-feira, 4 de julho de 2012

PRÉMIO LITERÁRIO FNAC


700 participantes e 10 textos escolhidos por um júri constituído por Valter Hugo Mãe, Doris Graça Dias e Carlos da Veiga Ferreira. O meu conto, Fashion Heroine,  está a concurso no site da FNAC  com vista à publicação até 12 de Agosto. Basta seguir o link e votar... Ou seguir as instruções: Site FNAC / cultura fnac / novos talentos literatura/ comece a votar/ escolher conto/ colocar nome, mail,data de nascimento e cidade e validar no final da página. Cada endereço de e-mail pode validar um voto uma única vez.

http://www.novostalentosfnac.com/literatura/2012/user/create?postId=4

EPÍSTOLAS

William Whitaker
Longo, o pedaço em que concedi licença sem vencimento à consciência e à vontade. Num “ (…)país de marinheiros a navegar nas águas insonsas da subserviência” nem a má companhia do Lobo Antunes me diluiu a inércia e a omissão. Só as  palavras nos salvaram, laboriosamente esculpidas ou, simplesmente, acocoradas, à laia de pedreiro, a partir pedra , num futuro enviesado e matreiro, abrindo caminho à poética do sobressalto.
 “Animula Vagula Blandula”…  Esta sim, a par com a tua, uma excelente companhia pela memória, pela delicadeza, pela “tendresse jolie et doux” com que a tua existência me premeia. Não nos vemos e sinto-te por perto, não falamos e oiço-te em silêncio.
Porventura, não vão as nossas cartas beijar a luz do dia com a têmpera das incetetezas de Adriano nem passear-se nos corredores vetustos de L’Academie, acima de tudo é pelo desejo e pela necessidade , mais pelo desejo da necessidade de  moldar, na plasticidade da palavra, o teu sorriso terno e franco , a firmeza com que escondes as fragilidades, o coração, ainda e sempre, adolesecente, a escorrer da boca e guardar tudo num ponto parágrafo docemente infinito, que te escrevo.
- Impossível! – Disse o orgulho.
- É arriscado! – Disse a experiência.
- Não faz sentido! – Disse a razão.
- Tenta-o! – Sussurrou o coração…

E assim, necessariamente, sussurro-te…

EL GUÉS - LAS PAMPAS EN LISBOA

Foi ao volante do velhinho décimo primeiro ano, sem jantes de liga leve nem direcção assistida que, com as manobras de apoio do velho professor de Português, aprendi a ouvir e partilhar histórias. E porque uma história bem contada é um bálsamo para a alma que devemos partilhar com o vizinho para prevenir a virose da mente,  deixo-vos a narrativa de "El Portugués"

Sebastião Afonso partira cedo a ganhar o mundo à procura da cidadania Socrática e do verdadeiro espírio filosófico. Afonso por parte do pai, que lhe vaticinava bons augúrios de rei descendente de nobre linhagem e Sebastião por parte da mãe pela materialização de um desejo pedido em dia de nevoeiro, cansado dos xistos, da miséria e da fome, e, dado que a noite se mantém calada na companhia das estrelas, fugiu por ela a dentro depois de mais uma sessão de bebedeira cozida a paulada nos costados. Por entre colcheias e semibreves de Beatles e Rolling Stones tão em voga à época, chegara, após várias peripécias, ao El Dorado sonhando com rios de prata e refeições quentes no estômago... Perdeu-se de amor pelas Pampas. Mares de erva húmida e verdejante, terra plana onde perdia a vista só a rencontrando semanas depois, toneladas de gado manso em liberdade... tão diferente dos xistos, das escarpas e das oliveiras mortas de sede das beiras. Sebastião Afonso enamorou-pelas terras, perdeu a sua virgindade num primeiro amor de entrega total e inconsequente... Os anos passaram e, entre a condução do gado e trabalhos vários que lhe grangearam fama e dinheiro, Sebastião Afonso amealhou um bom pecúlio que lhe permitiu abir uma venda... a "Tienda d'el Portugés"... fosse pela dificuldade fonética, fosse pelo carinho, a mudança do nome foi um passo tão curto como a redução da palavra: chamavam-lhe a "Tienda d'el Gués". Os anos iam passando, os negócios e a fortuna tinham criado vinculos de familiaridade muito próxima. Sobrava-lhe tempo para desfrutar da beleza ímpar das Pampas. Passava dias a percorrer as fazendas montado no seu corcel malhado de crina branca na companhia do mar de erva e do sol de cristal, de peito aberto, erguia-se ao vento gritando numa alegria infantil: "El Gués!! Sou El Gués"... Embora a liberdade de movimento e a beleza das Pampas fosse o número premiado na lotaria da sua vida, tinha investido toda a sua fortuna na Argentina e em Portugal, o regresso a Portugal, agora que lhe tinham diagnosticado doença má... afigurava-se para breve... Às nove da manhã de uma segunda-feira negra e obscura, atendera o telefone...era o gerente da agência bancária... a vista turva, a nausea galopante e o desfalecimento rápido só lhe permitiram perceber as últimas frases..." A Argentina entrara em banca-rota...o seu dinheiro estava investido na totalidade em hedge funds... os mercados caíram em perdas irrecuperáveis..."
Paralelamente, o dinheiro que em Portugal tinha entrege a um gestor de negócios evapora-se a trás do dito... de degrau em degrau numa cadeia ascendente de infortúnios, o fio descarnara sob a forma de um coágulo e o curto circuito fôra rápido e indolor... nunca mais ficara o mesmo... passava, desde o regresso, a galopar pelas ruas da baixa em trajes andrajosos dizendo coisas sem nexo, varejando o ar como se conduzisse milhares de cabeças de gado invisíveis, urros inempestivos e gritos: El Gues El Gués!! que assustavam turistas e transeuntes... O vão de escada era o seu abrigo... a rua era a sua fazenda...
- Deixem passar por favor! - A voz firme do paramédico não deixava margem para dúvidas...
Afastei-me para deixar passar a maca onde se vislumbrava um amontoado de cobertores rotos e encardidos enrolados no que parecia ser um corpo...A meu lado o velhote informava os passantes:
- Era o El gués...o gajo foi emigrante na Argentina...perdeu o dinheiro... foi roubado... e deu em maluco coitado... Deus o tenha em descanso...
Não me contive... com delicadeza peguei-lhe no braço virei-o e disse-lhe:
- Não morreu nada! A esta hora anda a percorrer as Pampas de peito aberto, montado no seu corcel malhado de crina branca sobre o mar de erva verde e húmida e um sol de cristal...

TRANSPARÊNCIAS II


Era refugiado na transparência do olhar, debelando uma timidez à distância a que não resistia ao vivo, concordando às escondidas como se fazê-lo de outra forma fosse uma afronta, que percebera ser a sua vida feita de pretéritos e memórias. Ácidas umas, doces as outras, por vezes era na noite fresca com míngua de chuva e um quarto de lua que, lenta e suavemente, regressava às palavras. Amavam-se por palavras. Mais que perseguidos eram empurrados por elas . Ganhavam contornos de fino recorte iterário que apelavam aos sentidos de uma forma tão física quanto o permitia a metáfora colada à alma com a pontuação  dedilhando borboletas no estômago.   E assim, trazidas pela brisa suave ou em caixas de letras, as palavras respiravam por perto, lembrando-lhe que era na generosidade e na entrega sem pausas, elos únicos, francos e irretocáveis que a vida se tornava tão fácil, no momento em que elas os levavam para lá do céu com o arco-iris e o mundo inteiro lá dentro…

TRANSPARÊNCIAS I

            (...) 
Nua, encostada à parede, de pernas abertas, ligeiramente flectidas, dedilhando as pregas do sexo com a perícia sincopada de um pianista, afundava  o dedo médio e o indicador e transportava-os até à superfície humedecendo a entrada enquanto a sua mão esquerda comprimia,  ao de leve, os seios. Ansiava tê-lo ali, já, em permanência, desfrutando do seu prazer. O ritmo do toque acelerou-se mal sentiu a chave na porta. Lá fora chovia com uma intensidade digna de filme e ele, encharcado e a tiritar de frio, olhou-a e, de imediato, se desembaraçou do casaco, do qual, segurava ainda com uma lassidão morna, as abas e um destroço de guarda-chuva. Tirou a camisa e deixou-se tombar de joelhos diante do seu sexo. Apoiou-se lhe nas pernas, ligeiramente acima do joelho estendeu a língua e começou um lento percurso de carícias  pelas coxas, titilando, ao de leve o clíoris. Ela cravou-lhe as mãos na nuca empurrando-o, com firmeza, para o sexo que  entreabria  em flor
saudando a chegada das manhãs de Abril.
- És meu! – Sussurrou-lhe ela.
- Seeempree… -  Anuiu ele..
Puxou-lhe o cabelo para trás despegando-o de si. Introduziu o dedo médio e o indicador,  alguns segundos, dentro do aveludado húmido do sexo  não se coibindo de lhe enterrar os dedos na boca para que ele se inbriasse com o seu perfume adocicado. Empurrou-o de novo, com ligeireza. Ele, dexou-se cair  e deitou-se no chão em câmera lenta, ela ajoelhou-se  e puxou-lhe as calças molhadas e as boxers. A língua dela descobria, agora, um carreiro  até ao interior das suas pernas sentindo  na face a carícia do sexo entumescido. Não resistiu: provou-o … Uma e outra vez... E estendeu-lhe os lábios para um beijo de partilha e volúpia.Deixou descair as ancas e num espasmo arregalou os olhos mal o sentiu entrar. Começou então um lento vai-vem entrelaçando os dedos nos dele com os nós apoiados no chão. O movimento tornara-se mais rápido e insistente. Consumiam-se na transparência fluida do olhar onde cabia o arco-íris e o mundo inteiro lá dentro  (...). A fricção tomara uma cadência frenética só parando no estremeção e no murmúrio imperceptível dos sons guturais até se sentir inundada de prazer. Ela oferecera-se com generosidade, ele entregara-se sem obstáculo.  (...) ele estranhava-lhe o silêncio. Ela, para quem as palavras eram supérfluas quando a certeza era firme e esta se manifestava no movimento  do corpo em tradução livre do desejo, sorria-lhe encontrando, finalmente, não aquilo que procurava, mas aquilo que os fazia felizes…

segunda-feira, 2 de julho de 2012

ENTREVISTA COM PAULO MOREIRAS

Mini-entrevista a Paulo Moreiras onde poderemos ficar a conhecer melhor um homem culto, afável e que, generosamente, acedeu ao nosso pedido. Após uma breve biografia oficial, aqui ficam algumas linhas trocadas sobre a sua obra e a sua visão da escrita num tom sereno e grande riqueza vocabular.
Nasceu em Agosto de 1969, em Lourenço Marques, Moçambique. Arribou a Portugal em 1974. Viveu no Douro, passou por Almada e vive agora em Meirinhas, perto de Pombal. Em 1996 publicou como argumentista “Hermínio, Regresso a Portucale”, em parceria com o desenhador Victor Borges. Em 1999 foi-lhe atribuída uma Bolsa de Criação Literária na modalidade de Narrativa. Entre Agosto de 2000 e Agosto de 2001 foi o coordenador do destacável cultural “Viver”, do semanário Jornal de Leiria, tendo colaborado também nos semanários O Correio de Pombal, Tribuna do Oeste, Região de Cister e no mensário Jornal das Cortes, neste último com prosa e poesia. Publicou o romance A Demanda de Dom Fuas Bragatela e, mais recentemente, Os dias de Saturno.
Caro Luís Bento,

Obrigado também pelo convite de figurar na sua galeria de entrevistados.

Aqui ficam as minhas respostas, desejando que correspondam às suas expectativas.

Um abraço,

Paulo Moreiras
 
1 - Se passarmos em revista alguns dos seus títulos: “Elogio da Ginja, o B.I. do tremoço ou o B.I. da Morcela ", escorregamos suavemente para a temática da gastronomia. De que forma, e como descobriu ter a gastronomia lastro para desenvolvimentos literários?
Por pura curiosidade, facto aliás que já carrego comigo desde a infância. Tive o privilégio de ter vivido numa pequena aldeia nas margens do Douro, quando vim de Moçambique, e de ter andado à descoberta dos inúmeros frutos que existiam nas terras da minha avó e dos meus tios. Parecia um Tom Sawyer, descalço, a correr pelos campos, a subir às árvores e a comer toda a espécie de frutos enquanto via os comboios ou os barcos a passarem. Junte-se a tudo isto a enorme riqueza gastronómica que degustei então, a broa acabada de sair do forno regada com azeite, as vindimas e as "buchas" comidas de permeio durante a jorna. Uma maravilha. Essas memórias levaram-me sempre a saber mais sobre os alimentos, as práticas culinárias e as tradições associadas. Infelizmente em Portugal não existe muita investigação sobre estes temas, comparativamente com outros países. Aos poucos fui satisfazendo as minhas curiosidades com estes pequenos trabalhos. Mas ainda há muito para fazer, tanto mais que a Gastronomia Portuguesa faz parte do nosso património cultural desde 2000 e há um conjunto de práticas que não podem, nem devem, cair no esquecimento.
 
2 – Em “ A Demanda de D. Fuas Bragatela” o herói (ou anti-herói) “arrasta-nos, ora por estradas reais, ora por semideiros escusos, em demanda de um dos mais importantes tesouros da Cristandade.” Tendo em conta este seu romance e olhando para a nossa história, poderemos concluir ser esta a génese da alma lusa? Andar em Demanda de qualquer coisa?
Esse é o nosso fado e o nosso destino. As demandas que todos carregamos servem para nos levar mais longe, arriscando, inovando, preenchendo-nos. Assim se constrói a nossa vida e o nosso património, as nossas memórias. O problema surge quando não sabemos bem definir as demandas que nos movem; por vezes vamos em busca de algo e dificilmente percebemos que o caminho é mais interessante do que o fim em si próprio. É como a vida ou como o amor.
3 – “Os Dias de Saturno”, situa-se no século XVIII num período de grandes transformações sociais e de significativos avanços científicos e intelectuais. E estes nossos novos tempos? Serão terreno fértil para inventar ou reinventar a escrita?

Felizmente a Literatura é um fértil alfobre onde ainda há espaço para invenções e reinvenções. A nossa língua permite tudo isso, seja pela incorporação de novos hábitos sociais, seja pela apreensão de novos vocábulos. O mundo está em constante mudança, assim como a nossa Língua. Tudo isto permite novas abordagens, por vezes bem sucedidas, outras nem tanto. O facto de estarmos a viver algumas transformações referentes ao modo como lemos - o caso do ebooks - irá fazer com que a escrita também sofra modificações, pois os canais também eles estão a mudar a forma como encaramos o livro enquanto objecto. São questões interessantes a que devemos ficar atentos.

4 – Como encara o processo criativo? Tendo em conta que se debruça sobre o romance histórico, com o cuidado a ter nos ambientes, no vestuário, no cuidado da linguagem e na pesquisa aturada, encara-o como um processo extenuante, absorvente e com uma forte componente de risco ou, pelo contrário, um processo natural onde o imaginário lhe flui com simplicidade?
 
É difícil falar sobre o meu processo criativo pois eu próprio nem sei às vezes como as coisas acontecem. Não é uma questão de inspiração, mas sim de muito trabalho. É um conjunto de complicações que se encadeiam desde a ideia original até à sua conclusão. Como referi, tenho muita curiosidade sobre determinados temas e isso leva-me a fazer pesquisas aturadas, mas gosto desse processo. Não direi que é extenuante porque me dá muito prazer. Gosto de aprender, de saber. Depois, durante esse processo, deixo o meu espírito criativo divagar e fico aberto a novas ideias que surgem, muitas vezes, quando encontro uma palavra, uma simples palavra usada nesses tempos de antanho. Fico fascinado pelas palavras, pelos seus significados e pelas imagens que elas proporcionam quando lidas. Umas conferem um ritmo e uma malícia interessante ao texto e isso agrada-me bastante. Existe um grande componente de risco, por isso demoro muito tempo a escrever. Tenho de sentir essas palavras, ter um conhecimento profundo sobre a época que vou trabalhar. A maior parte das vezes não uso a totalidade das minhas informações, não são precisas para o romance, mas tenho de as sentir na minha cabeça. Tenho escolhido criar romances históricos porque me possibilitam um certo imaginário, como se a distância temporal permitisse certas veleidades criativas e romanescas. Além disso, os meus romances, apesar de históricos, são sempre sobre os invisíveis da História, aqueles que não figuram nos livros. Depois de ter feito a investigação, deixo tudo a marinar na minha cabeça e a trama vai urdindo-se, paulatinamente e então começo a escrever. Por vezes tudo muda, as ideias alteram-se e o romance segue outro caminho, surpreendendo-me, na maior parte das vezes, para melhor. No fim de cada livro fico vazio, como uma garrafa e depois lá começo a encher a vasilha que se segue.

5 – “Os Dias de Saturno” a fazer jus à crítica comummente aceite, é “um romance fascinante sobre o amor e a sua impossibilidade, com doses iguais de humor e dramatismo”. É o amor assim tão impossível? Não deveria ser, à semelhança da escrita, uma reinvenção diária? Não deveria ser essa a nossa… Demanda?

Sou um homem apaixonado e sempre acreditei no amor. Pode parecer impossível à partida, mas o caminho a percorrer é frutuoso. Para isso, para ele se concretizar, o amor deve ser uma reinvenção diária pois não é fácil construí-lo e mantê-lo. Curiosamente, quando escrevi "A Demanda de D. Fuas Bragatela", a demanda do meu personagem, no princípio, era uma questão material, mas depois, durante o processo de escrita, ele seguiu por outro caminho, como na letra Pitagórica (Y), acabando por descobrir o amor. No final, essa era a sua demanda e a de todos nós. No romance em que estou a trabalhar a questão da impossibilidade do amor também se coloca, mas não foi uma situação pensada. Acabou por surgir no decorrer do processo. Ou seja, ando sempre a escrever à volta do mesmo...

domingo, 1 de julho de 2012

PRENDA DA MADRUGADA



Por vezes, o escriba perde o pio… Longas e penosas temporadas sem ouvir o trinado das palavras. Fosse ele siciliano e há muito que estariam a fazer parte da composição molecular do betão armado, mas não… anos de carga cultural judaico-cristã, amparada no encosto terno e sábio da experiência do avô materno a vergar-lhe o dorso , não lho permitiriam. “Isto é como as ovelhas… é deixá-las ir que quando tiverem fomeca regressam! Até se encavalitam umas nas outras!” E voltaram… um emaranhado de hieróglifos confuso na sintaxe, mas prenhe na sensibilidade e no sentido… E assim, nas entrelinhas da noite cerrada, deu-se um click … Uma prenda da madrugada…

Por mais que ele puxasse as baínhas à memória não encontrava a costura onde se perdera da paixão. Fosse por míngua de alimento, fosse por ausência de palavra, o certo é que, escudado na sabedoria paterna que bastas vezes lhe zurzira, com firmeza, ser a poesia um bálsmo para a alma, mas fraco aconchego para o estômago, a deixara morrer em lume brando acabando por lhe fazer o funeral ao longo de uma vida de trabalho árduo e de apetites saciados em relações sem corda ou baraço de tamanho suficiente para o compromisso. Ganhara o estômago numa luta desigual com o dicionário dos afectos…

Ela, por sua vez, adormecida numa quietude morna e constante, sem sobressaltos, habituada ao quotidiano novelesco iniciado, bem cedo, à porta de casa e a terminar já com o sol entretido a desenhar geometria na sombra dos muros de reboco mal acabado, doce, sensível, embrulhada numa aparente fragilidade, de olhar a um tempo sereno e forte, buscava uma melodia afinada no seio da paixão que ,ao invés de pernoitar, residisse em permanência naquela assoalhada vaga no coração.

Magnânimo e omnipresente, talvez por distracção ou experiência, o destino dera-lhes uma prenda. Tropeçaram um no outro numa química em efeverscência e sem manual de instruções. Os corpos, nus, moldados numa forma única, consumiam-se num movimento lânguido e lento , através dos cabelos dela escorregando teimosamente por entre os dedos dele que, de olhos bem abertos, se deliciara com o gemido rouco e profundo com que ela lhe acariciara os lábios . A lua a estender-se pelo céu com uma dormência dolente e preguiçosa e o relógio a encher-se de horas e eles, de mãos dadas, experimentando num último estertor de prazer, um sorriso amplo e afogueado a iluminar a face de ambos.

Ele, cogitando de olhos no tecto, percebera que não precisava mais de puxar as baínhas à memória. Ela, estranhando-lhe o silêncio, não resistiu à pergunta:

- E tu? Em que pensas?

Dominado ainda por uma réstea de calor, fez uma pausa, inspirou fundo e, de sorriso nos lábios, perguntou-lhe por sua vez:

- E tu? Sabes o que é amar?

Ela, sem ponta de espanto, sorriu, recordou as palavras doces da mãe que, com uma paciência ilimitada lhe saciava a curiosidade desconcertante da idade dos porquês, aninhou-se-lhe no peito , atirando-lhe num sussurro:

- Amar? Amar…É gostar de ti com muita força…

LETRA M... DE... MAIS...




Metera-se a caminho do Porto rolando em velocidade excessiva no atapetado do asfalto. Mais do que a compra da casa foram os traços finos e elegantes, que lhe divisara nos bytes da net percorrida a fio e insistência, que o levavam em busca daquele olhar forte e perturbador que, aos quarenta o mantinha em suspenso, preso daqueles quarenta debruados a quilates prenhes duma sensualidade acanhada..

Chegara cinco minutos antes da hora marcada aos escritórios da imobiliária. Dera com ela sentada na secretária de saia e casaco pretos, camisa adivinhando formas na sua transparência, uns sapatos de salto agulha, lábios rasgados e finos, nariz direito, cabelos longos, soltos num volume selvagem e aquele olhar felino onde, de imediato desejara perder-se no verde das suas sete vidas. Aproximou-se com um cumprimento de mão leve sentindo-lhe o aveludado e o tremor expontâneo. Olhos nos olhos, balbuciaram cumprimentos a rodos e sorrisos a destempero. Finalmente, ela retirara a mão, compondo o casaco deixando a descoberto parte da alvura redonda e firme de um seio desamparado e atractivo. Sentira-lhe o suspiro inflando de impaciencia e excitação. A química não se confinava aos tubos de ensaio das aulas de liceu. A reacção em cadeia dera-se ali mesmo, em catadupas de odor, olhares e respiração em códigos trocados no esboçar de sílabas alinhavadas a silêncio.

De mãos dadas, voaram numa vertigem estancada à porta da moradia com a placa “VENDE-SE”. Mal entraram no hall, ele não se conteve e, pegando-lhe no pulso, fê-la rodopiar até ficar de frente para si, acto contínuo, empurrou-a contra a parede nua, prendendo-lhe os pulsos. Por entre pastas, papeis e documentos espalhados nas lajes, esmagou os seus lábios finos e rasgados com um beijo longo e quente, ao mesmo tempo que comprimia o seu corpo , meneando-se de forma a sentir-lhe o sexo. Generoso e faminto, o corpo dela oferceu-se ao movimento libidinoso deixando-se prender, desta feita, pela face, nas suas mãos nodosas e másculas. Ávidos, os lábios não encontravam o fim num beijo cada vez mais longo, quente e húmido que abriam, agora, passagem a uma língua exploradora que encontrara companhia e se deixara enlaçar num turbilhão de fluidos e desejo. Ela mordiscava-lhe agora os lábios repuxando-os de olhos fitos nos dele. Matreira, a mão masculina desceu com um vagar anunciado , de forma possessiva e penetrante, em direcção ao sexo dela comprimindo-o e acariciando-o. Ela retirou-lhe a mão e obrigou-o a enlaçá-la pela cintura. Teimoso, por entre beijos afoitos e distraídos acariciou-lhe o ventre passeando com mão até aos seios roçando, ao de leve, um dos mamilos. A um tempo subiram as escadas em direcção ao quarto num compasso de ânsia. Abraçou-a pelas costas tirando-lhe o casaco à força de beijos e caricias no pescoço. A mão direita dele, teimosamente acariciava, de novo, o sexo dela e de novo rechaçada com suavidade. Foi a vez dela. Virou-se cobrindo o seu peito de lábios excessivos por centímetro quadrado de pele. Ele, rendido e perdido nas vagas daquela maré de olhar verde e felino, empurrou-a para cima da cama e deixando cair todo o peso do seu corpo num desfalecimento embevecido, puxou-lhe as abas da camisa fazendo saltar os botões, passando a mão direita, num gesto de destreza, pelo fecho do soutien. Os seios, agora desnudados e com a pele arrepiada surgiam, alvos e puros, oferecendo-se generosamente aos seus lábios. Não se fizera rogado.Iniciara uma doce tortura com a sua língua deixando um rasto húmido de desejo ante o seu tórax que se arqueava e arrepiava, a língua dançava sobre os mamilos túrgidos, duros e ansiosos, do beijo e da sucção. Começou por mordiscá-los rodando os maxilares o que provocou um frémito pelo seu corpo. Sugou-os, sentia-lhe o arfar, a respiração pesada e as suas unhas cravadas no cabelo. Desceu então, lentamente, em direcção ao ventre, novamente deixando um sulco brilhante e quente. Puxou-lhe a saia,alçou-lhe as pernas apoiando-as nos seus ombros. Puxou-lhe, com uma lentidão lasciva e calculda, os slips enquanto lhe beijava a face visível das pernas junto aos seus lábios. Iniciou então um percurso exploratório em sentido ascendente. Sem lhe retirar os sapatos de salto alto, beijou-lhe os dedos dos pés demorando-se um pouco, depois o peito do pé onde a sua língua fez novas acrobacias. Ajoelhou-se diante dela e ergeu-lhe as pernas ao nivel dos joelhos. A língua subiu arrastadamente pela zona interior das pernas em direcção às sua coxas. Ela fincava-lha as unhas no cabelo puxando-lhe a cabeça em direcção ao sexo. Em menos de nada os seus dedos afastavam as pregas do sexo que se oferecia generoso e húmido ao seu olhar faminto e ao seu desejo. Penetrou- com a língua, demoradamente, sentiu-lhe o estertor as coxas que o apertaram repentinamente e o gemido rouco que vinha lá de longe do mais fundo do seu prazer. Ela puxou-o pelos ombros exigiu-lhe o beijo sentindo o odor e o travo agridoce do seu sexo. Demoraram-se num beijo apaixonado, e então ela girou o corpo e ficou sobre ele. Prendeu-lhe os pulsos e deixou-se inclinar de modo a facilitar a entrada do seu sexo. Iniciando um vaivém ritmado, sincopado cada vez mais ávido e célere. Atingiram o clímax em uníssono, conjugado de forma activa a duas vozes. Ela deixou-se cair sobre o seu corpo, aninhando-se sobre o seu peito de respiração ofegante enquanto ele brincava com os seus cabelos longos…


Ela saía do banho e ele, docemente estático, apareceu-lhe à frente, de toalha estendida, abraçando-a com carinho. Ficaram assim uns minutos alheados do mundo que lá fora girava nos compêndios de geografia. Afastou-se dele, antecipando despedidas ou dificuldades numa autoestrada que se lhes atravessava no caminho. Sabendo que morava em Lisboa, quis saber as linhas com que se iria coser aquele fato novo, mantendo a esperança num amor sem interrupções. Num tom grave e inquisidor perguntou-lhe:


- E tu…Voltas?

Deixando-se cair exausto e feliz sobre a cama e de olhos brilhantes fitos nos seus, respondeu-lhe com paixão:
- Não… Fico!!

SENTIR-SE EM CASA



Castelo Branco, ferrarias, interior profundo de Portugal 1964,


A mãe berrava em tons agudos que espantavam os animais no palheiro. Epidural era um termo que distava trinta anos de calendário. Ia tê-la ali, naquela cama desconchavada com uma malga de água quente e a ajuda de duas vizinhas com mais buço que dentes na boca. Bébé no mundo, cordão cortado com tesoura romba e de pontas ferrugentas, daquelas que serviam para tosquiar as ovelhas e pronto! Nascera!

Mal tivera tempo de abraçar a sua menina. A única frase de parabéns que ouvira do marido, seca e apressada ,prendia-se com a janta:

- “Vê se te alevantas! Tenho fome! Preciso comer e deitar cedo que amanhã vou pra trás do Tojal, bem cedo, ajudar o chico na Eira”…

E assim dera à estampa, a menina Olinda Botelho, no meio de uma caderneta amachucada com cromos amarelecidos. A mãe, finara-se semanas depois após luta desigual com uma infecção interna. Olinda fora recolhida por madrinhas, amigas, vizinhas, tios, primos e assim saltara os anos e a escola em casas alheias. Aos doze, o pai achou que estava em boa idade de trabalhar e assegurar a lida da casa. Fora a primeira vez que conhecera a sua casa… amontoado de xistos com reboco envergonhado, móveis a pedir licença pela inexistência, tectos de cozinha mascarrados e a pedir limpeza desde o Eça de Queiroz… não esmorecera…era a sua casa! Com o tempo tornou-se moça viçosa, roliça de carnes, prendada e esperta. O rol de qualidades despertara as vontades e cobiça do Manuel Zarolho.

“Quem casa quer casa”… pois… a muito custo deixara a casa paterna para viver com o marido. De início, encaixara na gaveta do esquecimento os modos ríspidos , a voz entaramelada e o hálito fétido do álcool, mas breve, breve, experimentaria a mão pesada do dono pelos motivos mais fúteis em ritmo cada vez mais intenso e constante. Farta do amor pautado pela lambada e insulto, entornou-se-lhe a água do caldeirão no dia em que, grávida de três meses, fora premiada com mais manifestações do seu carinho doméstico:

- E pára de choramingar! Dás-me azia no estômago! Vai mas é preparar a janta minha porca! Tás na minha casa... fazes como eu quero!

Não! Não era porca porque os bácoros comiam a tempo e horas eram bem tratados e não levavam paulada…

Manuel Zarolho fora ao palheiro, no alto do barranco mesmo a espreitar as margens do rio Ocresa, buscar feno para os animais. Olinda Botelho, toldada pela raiva e pelos anos de servilismo e impotência não pensou duas vezes: dirigiu-se à adega, levantou as sacas das cebolas e tirou a espingarda guardada debaixo do estrado. Rapidamente voltou à cozinha e, por detrás das latas amolgadas de farinha e arroz, sacou dois zagalotes da caixa de cartão que estava aberta. Desatou a correr na companhia de papoilas e calhaus e assim que o viu mesmo antes de chegar ao barranco gritou-lhe:

- Manuel! Ò Manuel! Olha pra mim malvado!.. que lá pró inferno que é pra onde tu vais…não te vais esquecer da minha cara!!

Um bando de pássaros debandou do alto da copa duns quantos pinheiros após o estrondo… Olinda pousou a espingarda junto ao corpo inerte e voltou para casa. Sentou-se no banquinho de cortiça e sacou dum bocado de pão, duma navalha e da chouriça cortada sobre o prato em cima da mesa. Aliviada, mais repousada, escorada na vingança e com o remorso a léguas de distância, comeu uma bucha de pão com chouriço e então sim… sentiu-se em casa… 

sexta-feira, 29 de junho de 2012

A PRETO E BRANCO



Preto e branco, assim estampado em grossa letra de imprensa na prata mágica do chocolate, sucedâneo das melhores marcas “à venda nas casas da especialidade”, que a mãe lhe comprava, numa memória longínqua, enrodilhada em café torrado e feijão branco a granel, na mercearia do senhor Rodrigues, encravada num prédio a cair de podre no declive acentuado da General Taborda, para as bandas de Campolide onde hoje funciona um banco, lembrava-lhe, com clareza, o gesto rotineiro do senhor Rodrigues ao balcão. Após as compras, sacava do rectângulo carcomido de madeira com uma mola a prender meia dúzia de folhas amarelecidas e enroladas onde assentava, no rol, as dívidas, os calotes e a vida da vizinhança penhorada de remedeio omnipresente. O melhor de tudo era quando o senhor Rodrigues oferecia um chupa daqueles coloridos , aos montes dentro dum boião enorme de vidro com tampa vermelha, embrulhado no cinismo das parcelas amontoadas a eito no rol. O chupa sabia a ginjas mesmo sem nunca as ter provado. Outro gesto rotineiro numa praxe instituída, eram os vinte e cinco tostões que a mãe dava sempre ao homem em cadeira de rodas, junto à berma, que se esquecera das pernas, numa mina cravada no meio do mato, naquele pontinho pintado a amarelo no globo terrestre com umas letras a dizer Guiné. Na chegada a casa, derretia paulatinamente o chocolate na companhia do Jornal do Cuto sob o pano de fundo do Simplesmente Maria do Rádio Clube Português.

Saudades… Tinha saudades das memórias doces, do cheiro do café, do chocolate…

Da Mãe… 

MUNDO COMO DEVE SER



No mundo como deve ser juntava de um lado as coisas boas, os sonhos, o sorriso e o olhar, do outro, as coisas más, os excessos e as mágoas. No meio, aquela sintonia doce a tomar conta de ambos,  ainda que distantes, ainda que frágeis, apesar de erros  e mal-entendidos, Deixaria o destino correr no reflexo das palavras  dividido entre o peso  da sintaxe e a ternura da memória ,  sem vergonha ou rebuço, voando longe, na carícia e no beijo, escorrendo desejos e promessas, procurando, sôfrego, o amor…

CAMINHO

O caminho para sair da crise...

A REVOLUÇÃO


Ao certo não sabia qual fora a deixa para entrar em cena. Se o sorriso precário marcado a amarelo torrado, difuso e cinza do tabaco, se pela singeleza da herança genética. Não que fossem más pessoas, antes pelo contrário, o pai  cansara-se da progressão geométrica e linear em semi-círculos sempre às arrecuas  para uma existência chã e sem brilho, e demandara por Lisboa para emendar a vida estragada pela necessidade  acabando por gretar as mãos na dureza do martelo e escopro no andaime. A mãe a servir em casa de uns senhores, embevecida com as histórias que ouvia em serões de tertúlia sobre os feitos e bravatas de Gonçalo Mendes da Maia -  O Lidador, achara-lhe graça e juntara os trapos. Ela por ser séria e apresentável, ele por ser asseado e trabalhador acabando por baptizar o rebento com o nome de Gonçalo, que rapidamente desaguara num castrador Gongas  longe dos augúrios de  grandes sucessos, desígnios e grandeza,  sem direito ou recurso a contestação...
 O filme começara lá atrás onde a memória se perdia entre o sorriso da infância e a ingenuidade da existência sobre um cenário, tosco, parco de adereços, de traço irregular desenhando, de forma infantil, o azul do céu, umas quantas árvores, uma casa com chaminé,  Deus a brincar com as pessoas e o destino a passar rasteiras.
Fosse como fosse, apesar da singeleza da herança genética tinha neurónios, uns quantos, por sinal  funcionais e com terreno fértil ao redor, embora, raramente,   os pusesse  a fazer ginástica. Para além da falta de pensamento lúcido ou iluminado, ou de jeito assim paneleirinho de escrever ( o conceito mais aproximado que encontrava para descrever literatura), Gongas vivia num país politicamente correcto e entretido, alinhado em termos de importância, algures, entre a variação bolsista do Arrentela Futebol Clube e a taxa de câmbio da libra do Burkina Fasso. Assim, seguia-lhe as pisadas decalcadas da modorra empedernida e  da inveja, acabando na  ausência de iniciativa individual.
O pai a insistir para estudar e ele que, teimosamente, fintara letras e algarismos na escola tirando, a ferros, distinta formação em sessões contínuas de matraquilhos. Dali até à idade legal fora menos que um fósforo  e aí arranjara trabalho na fábrica de cablagens. Na idade madura perdera-o e derretera, no imediato, todas as esperanças. Vivia na ignorância, a manifestar-se, bastas vezes, pelo escárnio e pela agressividade a cujo binómio complacente juntara o ócio e assim, acrescido de um grão na asa ocasinal, diluía a vida em carambolas às três tabelas. Farto de ruminar apetites e vontades ao ritmo afiado do infortúnio, com duas prestações da casa em mora e o gás por pagar, mais uma série de pintelhices dessas com paradeiro incerto, decidira-se pela revolução naquela noite de borga escudando-se, para isso , no sólido argumento de duas grades de “mines” com o qual convencera dois vizinhos , matarruanos e convictos benfiquistas sempre prontos para a pancada. Fiat uno de mil novecentos e noventa e quatro, uma granada de recordação da Guiné, uma faca de mato de ir às lapas nos pontões da Cova do Vapor e a  “flóber” que o padrinho lhe oferecera à entrada da adolescência. De olho nos preparativos do exército,  a mulher assomara à janela do primeiro andar, ainda a limpar um pratinho da extinta cerâmica de Sacavém com o desenho de um cavaleiro empinado brandindo uma espada, que o tio coxo encontrara numa obra em que mandou umas paredes abaixo, movida pela curiosidade daquela saída  extemporânea ficando a saber que  eles iam a Lisboa fazer uma revolução que já era tempo
- Pois sim -  Respondeu ela, encolhendo os ombros entre o enfado e a saturação – Pois então, de caminho, passa pela Damaia lá por casa do teu pai e pede para ele abonar vinte éros se não , amanhã, cortam-nos o gás…
De vez em quando, apesar do esforço,  não se furtava à visita de médico que o passe social lhe permitia. Lá ia ele, com o saquinho da Zara com o tupperware dos restos do almoço,  suportar, no olhar, o peso da reprovação pelo plasma, a wii, o telemóvel , o aparelho dos dentes do puto, mais o gajo do banco  a ligar por causa do buraco na conta, agora cratera sem fundo, à sombra de juros, mora e comissões que lhe reduzira o orçamento à condição de destroço. Achava que chegara a hora de contrariar o destino, os anos de ócio e imprevidência.
O carro  transpirava fadiga dos metais em chiadeira incrível na rampa dos cabos de ávila num esforço, digno de registo no manual de mecânica, rangendo fissuras e desiquilíbrios quase a chegar aos oitenta com o vento pelas costas. O plano fora delineado pelo caminho abrindo garrafas a eito sem dó nem piedade: tomar de assalto a RTP anunciando aos microfones a revolução e tomada de reféns se fosse preciso. Armados até aos dentes, com os benfas a gritar pelas jolas com que abasteceram a bagageira delapidando , assim, o engodo para os homens da Securitas, a revolução estava em marcha…ainda que lenta e titubeante.
Roncavam, a sono solto à entrada dos emissores quando, ao amanhecer,   sentiram umas pancadas secas e vigorosas no vidro do condutor e um olhar farejador e inquisitorial ornado com uma farda da Securitas:
- Então que se passa aqui???
Nhec... nhec... nhec… a manivela a baixar o vidro que só desceu pela metade e o Gongas, ainda estremunhado, a esticar o pescocinho fino e esguio e a inclinar, com sacrifício,  a cabeça pondo a testa de fora e, de olhos semi-cerrados, a articular aos bochechos  que vinham fazer uma revolução...
- Pois vão lá revolucionar para outro lado!! Andor que isto aqui não é a Santa Casa!!
O Gongas olhou para os companheiros esbugalhados, as grades de mines vazias e a vontade aflitiva de mudar a água às azeitonas e aceitou, e agradeceu, com um aceno reverencial, o empurrãozinho para ajudar o Fiat a pegar  decidindo, naquele momento, abortar o golpe de estado. Na descida do Monsanto deu uma olhadela de soslaio ao ponteiro da gasolina a cavalgar a reserva e viu que ainda ia muito a tempo de meter  para a IC19… O sol já despontava e o trânsito começava a engrossar. Se se despachasse, ainda o apanhava… era só suportar o tal olhar… um saltinho à Damaia e… sacar vinte euros ao velho para não lhe cortarem o gás…

ENTREVISTA COM MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA


1 – Tendo desenvolvido uma intensa actividade literária e encontrando-se, agora, ligada ao mercado editorial, vê alguns pontos de contacto entre estes dois mundos?  O que tem um a aprender com o outro? É uma mais valia para o escritor? Para o editor? Ou não há vantagem em conhecer “o outro lado”?

Na verdade, a minha actividade literária foi quase sempre simultânea à editorial: entrei no mundo da edição em 1987,embora só me tenha tornado editora em 1998 (que é como tem de ser – embora hoje haja editores que nunca foram assistentes nem saibam o que é rever umas provas). Ainda que tenha começado a escrever poesia muito cedo, só tive livros publicados nos anos 90, já passava dos 35 anos. E isso tem que ver seguramente com o grau de exigência que desenvolvi no meio editorial – só deixar sair os meus livros quando estava absolutamente convencida de que não iria ser capaz de fazer melhor e, por outro lado, quando outros (uma espécie de editores) me disseram que o que escrevia tinha qualidade e merecia a publicação. Mas também a minha actividade literária facilitou o meu contacto com os autores portugueses. Sempre que lhes sugeria alterações, por exemplo, o facto de eles saberem que eu própria escrevia e tinha livros publicados parecia dar uma qualquer garantia de que eu sabia o que estava a dizer. Houve vantagens, evidentemente, em conhecer os dois lados. A desvantagem maior foi ter deixado praticamente de escrever por ter sempre a cabeça cheia de livros de outras pessoas.

2 – Como é escolher um manuscrito? Tenta, de alguma forma, identificar um estilo de autor? “Fareja” o potencial literário e comercial? Quais os critérios que a ajudam a definir a “qualidade” para o grupo Leya?

Seleccionar um original para publicação é sobretudo ler muitos medíocres ou sofríveis à procura de um bom (em suma, uma grande teimosia). Mas, quando se encontra um bom, isso sente-se, não é coisa que se possa definir. No entanto, a sensação mais comum é a da descoberta de uma forma diferente de escrever, de uma voz nova (porque a língua é de todos e fica cada vez mais difícil reinventá-la). Mas há também escritas muito límpidas e directas que fazem excelentes livros, apostando numa estrutura fora do comum em detrimento do trabalho de linguagem. Tudo isto e outras coisas acabam por definir as marcas do autor ao fim de uns quantos livros publicados. Quanto a potencial comercial, é sempre muito difícil conseguir grandes vendas num primeiro livro: as pessoas raramente dão atenção às estreias, a menos que, por um acaso feliz, de repente toda a gente se ponha a falar de um autor, como aconteceu com o José Luís Peixoto quando começou. Por isso, acabo por estar mais atenta à qualidade do que ao potencial comercial. Em literatura, se o autor for realmente bom, mais cedo ou mais tarde – depois de alguns prémios, de preferência – os seus livros começarão a ter vendas significativas. Basta ver o que aconteceu a valter hugo mãe recentemente (o seu primeiro romance vendeu apenas cerca de mil exemplares quando saiu). Há, mesmo assim, que dizer que às vezes existem livros de qualidade que não publico por crer que o número de leitores que o apreciariam não justifica o risco e os custos da edição; mas são poucos, na verdade.

3 – Existe um estilo de escrita tipicamente português ou europeu? Ou, com a globalização e todas as ferramentas de comunicação que nos tornam vizinhos à força, entende que a escrita é, na actualidade, uma mera tradução trans-nacional de um mesmo estilo/tendência/literatura popular?

Na chamada literatura para mulheres (romance, por oposição a novel) e em alguma outra ficção comercial (histórias de vampiros, thrillers e certos policiais, mas não todos) não se consegue de facto distinguir a nacionalidade do autor, a não ser, talvez, se este situar sempre os enredos no respectivo país. Digamos que a linguagem utilizada neste género de ficção é mais global e simultaneamente mais pobre (quase me apetece dizer que nestes livros não existe um «estilo»). Mas, na verdadeira literatura, todos os autores são diferentes, independentemente do país donde sejam, e pode haver dois autores tão diferentes como Gonçalo Tavares e João Tordo a escreverem na mesma época e no mesmo país. Na América Latina, o realismo mágico constituiu de facto uma espécie de «estilo de grupo», de estilo típico de uma região, mas hoje a literatura desses países nada tem já que ver com García Márquez ou Juan Rulfo e os livros de alguns mexicanos ou chilenos podiam ter sido escritos por europeus (li há uns tempos um romance do argentino Andrés Neumann e senti-me a ler um livro alemão ou russo). Enfim, o estilo não é uma questão de país ou continente, embora isso não queira dizer que, por não conseguirmos identificar o país do autor pelo seu estilo, todos os autores escrevam hoje da mesmíssima maneira.

4 – Ultrapassando um pouco as questões comerciais, a editora tenta formar um pouco a sociedade? Vêem-se como uma entidade que tenta ter um papel interventor na sociedade?

Não posso falar em nome da empresa, evidentemente, e acredito que um grupo com tantos editores (de vários géneros e com idades muito diferentes) inclua visões bastante distintas sobre os objectivos do livro, da leitura e da edição. Nem sequer posso afirmar que é pior editor o que se preocupa apenas com o entretenimento – e gera receitas importantes ao «patrão» – do que aquele que vive obcecado com a formação intelectual e não só não gera receitas, como publica apenas para uma elite. Acredito, mesmo assim, que o livro foi até há muito pouco tempo (antes da Internet e da TV Cabo, por exemplo) praticamente a única maneira de conhecermos outros mundos e entendermos a mentalidade das pessoas. E não falo especialmente de ensaio, pois, tanto ou mais do que o ensaio, a literatura tem a capacidade de nos dar a ver realidades longínquas ou desconhecidas através de uma história com personagens inventadas (nos policiais, por exemplo, aprende-se imenso sobre a sociedade). Todos os romances de qualidade são, nessa medida, formadores – e os editores que os seleccionam têm um papel importante nesta formação, a par dos professores, dos jornalistas, das famílias. Porém, tendo-se a edição tornado nos últimos anos uma verdadeira indústria (saem 40 livros por dia em Portugal!), é muito difícil evitar a publicação de livros mal escritos e com deficiências estruturais ou esteticamente deploráveis (logo, que nada farão pelo desenvolvimento cultural do leitor) se o autor for alguém conhecido e, portanto, um potencial sucesso de vendas. A única coisa que me consola é que as receitas desse tipo de livros às vezes servem para publicar outros que se vendem bem menos, mas podem, efectivamente, oferecer qualquer coisa de positivo aos leitores em termos formativos.

5 – Uma última questão: Na situação actual (crise de valores, económica, social, cultural) entende que o equilíbrio se encontrará, algures, no desempenho de um papel de maior relevância da literatura e da cultura em geral ou, pelo contrário, esse papel estará irremediavelmente condenado pela ditadura financeira?

Dizem que por vezes é preciso que as coisas batam no fundo para as nações e as pessoas acordarem para os problemas. Se assim for, podemos aprender muito com esta crise que atravessamos. Os financeiros, no fundo, são os grandes culpados dela – e talvez isso ajude, no futuro, a relativizar a sua importância. Gilles Deleuze acreditava ser possível haver um período de ouro a seguir a um período pobre (em termos artísticos). Vamos dar-lhe razão e ser optimistas: é muitas vezes nas piores condições e nos piores momentos que os criadores produzem a sua obra-prima. É possível que os constrangimentos (económicos, logo sociais) que se vivem hoje levem de facto a um maior envolvimento dos cidadãos e a uma maior necessidade de estes se informarem. Até há uns anos, os mais jovens nem sequer iam votar quando atingiam a maioridade, hoje manifestam-se pelo direito a um emprego nas nossas ruas. Talvez daqui nasça uma geração mais culta e interessada, em lugar de uma geração acomodada que não tem de lutar pelas coisas.  Mas, claro, ainda haverá muitos gestores em todos os ramos que tentarão reduzir a realidade a números. Não é de um dia para o outro que se perdem os (maus) hábitos…

quinta-feira, 28 de junho de 2012

UMA NOITE


Surgia assim, de mansinho, o amor apenas escorado na grandeza da palavra.

“Amo-te”…

...Assim gráfico, poderoso, desnudado, oferecendo-se generosamente sob a forma de letra sem direito a reforma ou protesto, a lembrar-lhes a simplicidade das coisas e eles, esmagados, contemplando-as assim, alinhadinhas, desafiando-os a medir a geografia do desejo onde ambos se consumiam, não tão longe quanto parecia nem tão perto quanto desejavam, adivinhando-se as formas, os olhares, os cheiros a compulsão dos corpos  e o travo agridoce do sexo...

Ao diabo com o mundo, as convenções e o tempo a fugir à sua passagem! Amar era assim, uma longa história de paciência a folhear nos próximos capítulos, com assiduidade. Ele, em ebulição, a pretender-se simples, a dar-se por inteiro, sem remorso, numa dádiva, numa troca sem factura ou recibo em alegre convívio e atropelo e ela a apanhar-lhe o traço em breves pinceladas num curto esboço onde, por breves instantes, o corpo passara a noite, mas o coração hospedara a vida inteira…

A CAVERNA DA ALEGORIA


Nos bons tempos em que passeava preguiçosamente os livros pela escola e em que os furos eram metafísica mais importante que chocolates, lá por volta do 10ºano tirado na Escola Industrial e Comercial Machado de Castro, tida como fonte de onde brotavam, com naturalidade, engenheiros...dos bons...daqueles mesmo a sério com diploma e tudo, havia um antigo professor de Filosofia nascido na era do farmácia com ph e que fôra colega de carteira do Eça de Queiroz, sabiamente alcunhado de "migalhas"dado o seu elevado pendor para esmiuçar o mais ínfimo pormenor da questão, que tinha um modo peculiar de explicar a Alegoria da Caverna...
Numa época ainda dominada pela guerra fria e em que "Muro" e "Berlim" eram sinónimos de pontos cardeais, o migalhas considerava que alguns indivíduos oprimidos e privados das sua liberdades, se movimentavam num mundo de sombras e gritos que tinham, por única realidade, a que lhes era imposta pelos comunistas; a dada altura, o saber e a liberdade democrática dos países ocidentais estendera uma escada para que tivessem acesso à superfície...alguns indivíduos mais afoitos (intelectuais, artistas, dissidentes, etc.) atingiam o topo da escada e viam que a realidade era bem distinta das sombras e dos gritos, no regresso à caverna para trazer a boa nova a atestar a existência de um mundo melhor, os outros, por medo, ignorância e opressão, espancavam-nos, insultavam-nos e obrigavam-nos a todo o tipo de sevícias (sinónimo dos exílios e deportações para os Goulags).
Era com desdém e gozo infantil que reagíamos às patéticas invectivas e tristes reacções do mais profundo anticomunismo primário do velho migalhas, mas hoje, olhando para a nossa situação, é com alguns amargos de boca que relembro essa figura. Na realidade, a pobreza, a miséria, a ignorância e a tristeza constituem as nossas sombras, sabendo nós que, à superfície a realidade é outra, distinta, mas que o nosso "querido líder"  nos vai impingindo a ideia de que nada melhor existe e, teimosamente, insiste em nos manter na caverna...

ENTREVISTA COM CARLOS ADEMAR


Carlos Ademar, nascido em Vinhais em 1960, desenvolveu a sua actividade profissional no âmbito da investigação criminal, tendo a escrita sido companhia permanente desde muito cedo. A veia literária manifestou-se sob a forma de livro em 2005 com o título Crime na rua direita, seguindo-se O homem da carbonária, entre outros. Primavera adiada, o seu último romance, é uma viagem à memória, à Primavera Marcelista e ao final dos anos sessenta dominados pelo medo e pelo desejo reprimido de liberdade. Tive o privilégio de conhecê-lo num curso de escrita criativa. Aliada a uma excelente colocação de voz, a clareza das ideias e a simpatia distribuida a rodos deixou a plateia rendida e àvida de questões como se de uma aula se tratasse. Algumas tive ocasião de lhas colocar na altura, as outras espraiam-se aqui, hoje, numa entrevista generosamente concedida a este espaço.


1 – Conhecendo o seu percurso profissional, a questão é incontornável: o facto de muitos profissionais da polícia se dedicarem à escrita é uma necessidade? Uma catarse? Ou, simplesmente, porque há matéria em bruto para ser trabalhada?

 Nada sei sobre as motivações dos outros colegas que publicam, quanto a mim, das hipóteses que deu, excluindo a catarse, as restantes têm pleno cabimento. Na verdade, o que me impele à ficção é, desde logo, o gosto pela construção de histórias e passá-las à escrita, procurando, o mais possível, que o formato seja agradável a quem vai ler. Depois, é como diz, vivemos profissionalmente tantos episódios humanos incríveis, convivemos com personagens que ultrapassam em muito tudo quanto o mais fantasioso ficcionista pode aspirar alcançar, que considero um desperdício deixá-los esfumar-se num qualquer apeadeiro do tempo para todo o sempre. Com a consciência de que fico aquém do que desejava, ao escrever procuro deixar um testemunho deste tempo que me foi oferecido para viver, com as suas grandezas e com as suas misérias, nunca esquecendo a componente emoção, essencial a qualquer forma de criação.

2- Começou com o romance policial e enveredou pelo romance histórico. É uma viragem definitiva? Um abandono do policial?

Definitivamente, não. Só se pode escrever sobre aquilo que de alguma forma se domina. Tenho a veleidade de pensar que conheço a investigação criminal suficientemente para dela tirar partido em termos ficcionais. Gosto de História o suficiente para conhecer ou estudar os temas que vou abordando nos meus livros. Gosto de política o suficiente para me interessar e ter opinião sobre o que me rodeia e que interfere com o colectivo e, dentro da minha leitura, conseguir perspectivar o que pode vir a passar-se tendo em conta as premissas que valorizo. Estes são os três grandes temas que têm servido de tronco essencial a todos os meus livros. E não me parece que venha a ter grandes dificuldades em duplicar ou triplicar o número de livros que tenho, usando esta tríplice, dando mais ênfase a um ou a outro tema numa ou noutra obra.

3 – Entre os dois registos, policial e histórico, sente que há maior rigor e preocupação estética no romance histórico?

Não! De forma alguma. Em cada livro, tenha ele maior ou menor peso de uma ou de outra temática, as preocupações estéticas estão sempre em primeiro lugar ou, se quiser, no mesmo patamar que a trama e a envolvente emocional. Nenhum livro sai da minha mão para a editora sem que eu esteja convencido de que melhorá-lo mais é impossível naquele momento, isto independentemente da temática que aborda.

4 – Tendo em conta a evolução tecnológica e os novos suportes digitais da escrita que caminho antevê para a literatura?

A literatura em si não se ressentirá desde que sejam encontradas as fórmulas certas para manter o mercado: produção, distribuição, compensação – assuma esta a forma que assumir. Agora, tenho em conta a rapidez com que a tecnologia tem evoluído, estou convencido de que o formato tradicional do livro está posto em causa. Não sei, talvez ninguém saiba, qual o tempo necessário para levar ao seu desaparecimento, mas calculo que não seja muito tendo em conta os últimos desenvolvimentos tecnológicos e o enorme desequilíbrio do preço de produção entre o livro em papel e o e-book. Há duas semanas recebi uma carta da editora a pedir autorização para que os meus livros sejam passados a este novo formato a fim de serem comercializados. Ainda me soa estranho ler um livro sem o folhear, tomar o seu peso, sentir a textura do papel, da capa, cheirá-lo, mas é inevitável, sendo apenas uma questão de tempo. Dei autorização, claro.

5- Uma última questão glosando o título do seu último livro e levando em linha de conta a situação do país… A primavera foi, definitivamente, adiada?

O título do meu último livro, Primavera Adiada, ao ser criado tinha um duplo objectivo: remeter para o consulado de Marcelo Caetano, altura histórica em que decorre a trama, e logo, para as expectativas goradas de muitos portugueses pela postura do presidente do Conselho, designadamente no que respeita à não abertura do regime e à guerra colonial que Portugal travava em África; num segundo plano, o título pretendia referir-se à vida amorosa de Marta, a protagonista, que foi adiando a sua primavera até ao desengano final. Penso, contudo, que a pergunta faz todo o sentido se associamos o título do livro ao tempo presente. O 25 de Abril abriu-nos ao mundo. Portugal pôs fim à guerra e resolveu a questão colonial. Mais tarde aderiu à então CEE e, paulatinamente, os portugueses conheceram dias de grande progresso económico, ao ponto de, com toda a propriedade se poder dizer que, em termos médios, nunca os portugueses viveram com tanta qualidade de vida. A verdade é que as expectativas têm de ser sempre positivas; temos o dever de olhar para cima, tentando igualar os que vivem melhor do que nós. Era esse o objectivo, mas nos últimos tempos as contas têm-nos saído furadas. A crise mundial que estalou em 2008 revelou as nossas fragilidades para vivermos numa sociedade tão aberta, competitiva e global como aquela em que estamos inseridos. Conhecemos o povo a que pertencemos, conhecemos os seus defeitos - a inveja, a mesquinhez, o facilitismo -, e as suas virtudes – a crença em causas justas, o voluntarismo e a capacidade de trabalho. Um dos dramas históricos deste país foi sempre o mesmo: falta de elites competentes. As poucas que emergem, e por isso nos governam, têm os defeitos mais condenáveis do povo, sem possuir as suas virtudes. Foi isso que nos puxou sempre para trás ou nos impediu de seguir em frente. Um pecado quase genético do nosso ser colectivo: falta de visão estratégica. Poucas vezes a conseguimos e quando isso sucedeu, nas Descobertas, fomos grandes no mundo, e atingimos uma projecção muito superior àquela que seria a espectável face à nossa dimensão territorial e populacional.

Luís, obrigado pela atenção e felicidades.

Um abraço

Carlos Ademar

Luis Bento
Segunda-feira, 1 de Novembro de 2010