Nos bons tempos em que passeava preguiçosamente os livros pela escola e em que os furos eram metafísica mais importante que chocolates, lá por volta do 10ºano tirado na Escola Industrial e Comercial Machado de Castro, tida como fonte de onde brotavam, com naturalidade, engenheiros...dos bons...daqueles mesmo a sério com diploma e tudo, havia um antigo professor de Filosofia nascido na era do farmácia com ph e que fôra colega de carteira do Eça de Queiroz, sabiamente alcunhado de "migalhas"dado o seu elevado pendor para esmiuçar o mais ínfimo pormenor da questão, que tinha um modo peculiar de explicar a Alegoria da Caverna...
Numa época ainda dominada pela guerra fria e em que "Muro" e "Berlim" eram sinónimos de pontos cardeais, o migalhas considerava que alguns indivíduos oprimidos e privados das sua liberdades, se movimentavam num mundo de sombras e gritos que tinham, por única realidade, a que lhes era imposta pelos comunistas; a dada altura, o saber e a liberdade democrática dos países ocidentais estendera uma escada para que tivessem acesso à superfície...alguns indivíduos mais afoitos (intelectuais, artistas, dissidentes, etc.) atingiam o topo da escada e viam que a realidade era bem distinta das sombras e dos gritos, no regresso à caverna para trazer a boa nova a atestar a existência de um mundo melhor, os outros, por medo, ignorância e opressão, espancavam-nos, insultavam-nos e obrigavam-nos a todo o tipo de sevícias (sinónimo dos exílios e deportações para os Goulags).
Era com desdém e gozo infantil que reagíamos às patéticas invectivas e tristes reacções do mais profundo anticomunismo primário do velho migalhas, mas hoje, olhando para a nossa situação, é com alguns amargos de boca que relembro essa figura. Na realidade, a pobreza, a miséria, a ignorância e a tristeza constituem as nossas sombras, sabendo nós que, à superfície a realidade é outra, distinta, mas que o nosso "querido líder" nos vai impingindo a ideia de que nada melhor existe e, teimosamente, insiste em nos manter na caverna...