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segunda-feira, 23 de abril de 2018

FRAGMENTO



Medium

Sou um fragmento sem explicação, sem porto de partida  nem ninguém para esperar à chegada.  Somos vítimas do abismo feito de lençóis e da vontade do verão em querer ir embora, uma improbabilidade matemática na poeira cósmica e infinita do universo, onde só interessa a linha de crédito a seis meses, sem juros e a náusea que sinto já não sei porquê. Ontem tinha menos anos que hoje, menos rugas e mais paciência. Família? Vai bem obrigado! Ainda acordo, sem grandes certezas, todas as manhãs, ainda moro na mesma rua, na mesma casa, no mesmo corpo.
Desencontrámo-nos. O tempo corre depressa, eu penso devagar
E nesse hiato poético,
Anoiteço.


quarta-feira, 29 de novembro de 2017

DESPRENDIMENTO






Ainda murmuraste algo sobre o tempo, o espaço e a verdade.


Enrolaste-te e adormeceste.


Desliguei as luzes e desprendi-me, em silêncio, dos teus sonhos.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

CENAS DA VIDA CONJUGAL



Manuel Archain

Cenas da vida conjugal.

O tempo real, o instantâneo, o imaginário e a falta de palavras.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

PAISAGEM



Anna-Parini-Illustration-G-Health-Self-Injure-Boston


A crónica na Revista Caliban: https://caliban.pt/paisagem-53e18d87f9d9#.fhkn6gtlh

O tempo foi avesso connosco, nas linhas que nunca conseguiu cruzar.
Hoje já não há passado distante, só um tempo múltiplo, espartilhado, com a vaidade a ostentar-se, como se tudo fosse eterno e o azul do mar não fosse mais que uma metáfora protagonista de um desarranjo textual.
Não sei onde raio fica a paisagem, mas sei que o caminho segue o teu olhar.
Acomodo-me na inércia, nessa brincadeira camuflada onde se esconde o perdão.
O sol já se pôs, uma fímbria de dependência que se fundiu no efémero, aqui jaz outra noite, momento em que o eterno se torna no instante em que te beijo.
Eu gosto da rotina,
do silêncio,
da parte secreta de mim que tenho vergonha de contar:
dois dedos tortos, um olho míope, nervos, sinusite e triglicéridos altos.
Encontro nos teus olhos a poesia que falta na composição da análise.
Resta-nos, no infinito das palavras, o momento em que te despi e trouxe as asas.
A lucidez vive nua…

terça-feira, 7 de agosto de 2012

FANTASIAS TEXTUAIS




Estava exausta. Exausta de palavras e de espera. Apesar disso, sabia que ele viria e, assim, esperava. Esperava só mais uma vírgula, mais um  parágrafo, para sorrir com o desvelo e o carinho das suas palavras doces e seguras.  Ele acabava por chegar. Chegava sempre. Um sono tardio e incompleto num bocejo quase sorriso que lhe escancarava  a porta para o encontro físico, na matemática de dois corpos que se enrolavam num algarismo mágico  pleno de química e afecto, numa equação infinita onde o tempo era apenas um espaço entre linhas. 

quarta-feira, 27 de junho de 2012

PERSPECTIVAS II




A NOITE DE SEXTA-FEIRA
Guilherme batia aos pontos Fernão de Magalhães... Após duas viagens de circum-navegação pela cinco de Outubro e vinte minutos de seca esfumaçados sem interrupção... o inquilino do rés-do-chão há muito que dava mostras de vivacidade e impaciência... e ela nem era um "Brastemp"... com menos trabalho e mais cinquenta euros já teria dado o pidafo nas calmas... dito e feito! Pegou no carro e dirigiu-se estrada fora para o bas-fond da cidade...Estacionou perto do Camões e desceu, a pé, a rua do Alecrim.. à porta dos bares. naquele imenso manual de biologia, as distintas classes da fauna exibiam-se em portes lúbricos e miseráveis, entre as meias vermelhas esburacadas e as velhas exibindo sorrisos de onde os dentes, há muito, tinham inciado uma fuga prisional em larga escala, uma houve que lhe despertara a atenção... Ucraniana de gema... era ali que se refastelaria nas delícias pantagruélicas do sexo fácil... lá dentro, contudo, após meia dúzia de shots a vontade esmorecera, o inquilino do rés-do-chão dera às de vila diogo, em seu lugar, o enfado ocupara o trono e a necessidade de recuperar o cansaço de uma noite perdida impulsionaram-no a sair... Além do grizo, a chuva miúdinha acompanhava agora como chorus de tragédia grega, então apercebeu-se dos dois cofres fortes com abertura retardada que vinham no seu encalço... sabia ao que vinham e estugou o passo tentando iniciar a corrida... toldado pelo alcool e pelo cansaço, o chumbo preso às canelas não o deixava correr, olhou para trás e via com pânico, as figuras cada vez mais próximas, esgotou todas as energias na corrida, amaldiçoava agora as baldas às aulas de ginástica no liceu... Estavam cada vez mais próximo, sentia-lhes o trote e a respiração...
- Anda cá melro! - foi a última coisa que ouviu antes da pancada seca na cabeça...


Helena tinha, nitidamente , gozado com aquele parvalhão... ele reentrara duas vezes no bar acenando ostensivamente até dar nas vistas, desmanchara-se a rir...fora ali pôr um ponto final num parágrafo obscuro da sua vida. Ali conhecera Ricardo ali faria a catárse da relação...iniciara uma página, lera o capítulo e chegara ao fim numa leitura oblíqua e sem interesse...àmanhã era outro dia...um dia novo com tarefas a cumprir...

NO SÁBADO DE MANHÃ

Guilherme acordara num repente... o corpo estranhamente molhado e enregelado até ao tutano, a custo erguera-se e olhara em redor... não queria acreditar... na linha do horizonte os seus olhos turvos divisavam o topo das torres do Restelo...após uns segundos de estupefacção atreveu-se a olhar para o próprio corpo...sem sapatos, só com camisola interior e calças... agora que o torpor do alcool se dissipara começara a somar dois e dois... assaltaram-no e deixaram-no descalço em pleno Monsanto...decididamente, aquela que seria a noite da sorte grande tornara-se o dia em que tirara a bola preta do saco... "Rápido! não há tempo a perder..." se se apressar ainda chega a benfica antes da mulher...a explicação para o roubo dos cartões de crédito fica para depois... 


Helena acordara serena, a tormenta de lágrimas dera lugar a uma calma sem precedentes... tinha uma tarefa a cumprir... deitar fora os bibelots, os postais, as fotos, loiças, lençóis tudo, tudo, tudo, tudo o que tinha partilhado com Ricardo... o novo ciclo inicava-se hoje...dele... só ficaria com o essencial... o seu olhar poisou sobre o lavatório onde se encontrava o teste com marca positiva... um sorriso amplo iluminou-lhe o rosto até à alma...


AINDA A SEXTA-FEIRA À NOITE

Ricardo deambulava pelas ruas... tinha feito merda... e da grossa! pusera-se a mandar bolas para o pinhal e andava agora, de cócoras, por entre silvas e estevas peganhentas a apanhá-las...aquilo que tanto criticara nos amigos fôra exactamente fotocopiar...sem tirar nem pôr... A vida organizadinha, os filhos... deixara-se seduzir estupidamente... uma troca de olhares, uma ar moreno a brincar com os caracóis e... meia hora depois já rebolavam no motel da Praça da Alegria num sucessão de orgasmos múltiplos... a pila não mete férias nem goza dias santos ou feriados...nem a educação humanista dos pais tinha evitado o desastre... a mulher descobrira.. "porta da casa é serventia da rua"... por entre os carros estacionados, as imagens sucediam-se no seu cérebro...tudo o que tinha perdido...e nem sequer ficara com Helena... o fósforo da luxúria apagara-se à menor rajada de vento... afloravam-lhe de novo as imagens da sua infância... enquanto garoto... as brincadeiras de bicicleta no parque, as fisgadas aos pardais... sem se dar conta viera dar àquela rua... dirigiu-se para o prédio...tinha a chave da entrada... subiu as escadas e bateu à porta... Alguns segundos depois, timidamente, do outro lado da porta:
- Quem é?
- Sou eu... respondeu Ricardo num silvo...
À porta assomou a mãe...apreensiva estranhando a sua presença àquela hora...
- Aconteceu alguma coisa?
- Não mãe...tá tudo bem...
Entrou na sala... o cordão umbilical é apenas um pedaço de ráfia ensanguentada... o verdadeiro cordão nunca se rompe... e então, não retendo uma lágrima teimosa, aninhou-se no seu colo como nos tempos de garoto... e sonhou com a bicicleta, com as fisgas e os pardais...numa época em que o verbo ainda não tinha conjugação de pessoa, modo ou tempo...

terça-feira, 26 de junho de 2012

O TEMPO

Desde que inventaram a roda o mundo não parou mais... Então, tornemos a visitar este texto e aproveitemos a oportunidade para parar um pouco...


Ainda a mãe se encontrava prostrada na maca da ambulância berrando de dor de parto e já ela lhe esgadanhava as coxas metendo a cabeça de fora, ávida de ganhar o mundo. Nascida antes de tempo, com pressa de atingir a perfeição, tudo na sua vida fora uma olimpíada sem obstáculos. Dispensara as primeiras letras porque as segundas, trouxera-as com o cordão umbilical. Clássicos, modernos e assim-assim; contas, números e rabiscos foram segredos breves e acelerados, desvendados de forma esparsa e apressada. Faculdade, emprego, administração, adormecer em Londres, almoçar em Paris, jantar em Madrid, reuniões, accionistas e congressos... Foram degraus esgalhados a quatro e quatro numa escalada vertiginosa rumo ao sucesso, num sprint a contra relógio sem tempo para olhar para trás.

- “Não casas mulher?... Não tens filhos?... Vamos ao teatro?... Cinema? Um cafezinho?”- A tudo respondia com uma leveza insustentável:

- “Não tenho tempo!”

Até que um dia, por volta dos quarenta, numa curva da vida sem travões, durante uma viagem de carro com destino aos negócios, numa ultrapassagem com erro de cálculo foragido às leis da física vira, de repente, aquela luz frontal… A mesma que a encadeava agora vinda do tecto e iluminando todas aquelas batas brancas. Sentia frio, muito frio. Uma dormência letal no seu corpo banhado a hemorragia por dentro… Ao longe e de forma esbatida, ouvia murmúrios e o fraco tremeluzir do gráfico… E aquela luz… Aquela luz que a ofuscava… Se ao menos conseguisse fechar os olhos…

Então, de repente, de segadeira em punho, surgindo do meio do nada, esquálida, gélida e envolta no seu manto lúgubre surgiu a morte com o indicador espetado indicando-lhe que a seguisse…

"Que não… Que não ia, tinha muita coisa para fazer… Holdings para vender, contratos para assinar, posições para assumir"…

- "Piiiiiiiiiiiiiiiiii"… - O alarme sonoro e os acenos de cabeça foram a pedra de toque para desligar a máquina e apagar, finalmente, aquela luz…

A morte apontou-lhe o dedo de novo insistindo para que a seguisse…

- Não! Não me leves ainda! Deixei tanta coisa por fazer… Dá-me tempo…

Meneando a cabeça para a esquerda e para a direita, num movimento lento e sentenciador, a morte inclinou-se e com uma leveza insustentável proferiu:

- Desculpa! Não tenho tempo…
Luis BentoTerça-feira, 4 de Janeiro de 2011