domingo, 1 de julho de 2012

SENTIR-SE EM CASA



Castelo Branco, ferrarias, interior profundo de Portugal 1964,


A mãe berrava em tons agudos que espantavam os animais no palheiro. Epidural era um termo que distava trinta anos de calendário. Ia tê-la ali, naquela cama desconchavada com uma malga de água quente e a ajuda de duas vizinhas com mais buço que dentes na boca. Bébé no mundo, cordão cortado com tesoura romba e de pontas ferrugentas, daquelas que serviam para tosquiar as ovelhas e pronto! Nascera!

Mal tivera tempo de abraçar a sua menina. A única frase de parabéns que ouvira do marido, seca e apressada ,prendia-se com a janta:

- “Vê se te alevantas! Tenho fome! Preciso comer e deitar cedo que amanhã vou pra trás do Tojal, bem cedo, ajudar o chico na Eira”…

E assim dera à estampa, a menina Olinda Botelho, no meio de uma caderneta amachucada com cromos amarelecidos. A mãe, finara-se semanas depois após luta desigual com uma infecção interna. Olinda fora recolhida por madrinhas, amigas, vizinhas, tios, primos e assim saltara os anos e a escola em casas alheias. Aos doze, o pai achou que estava em boa idade de trabalhar e assegurar a lida da casa. Fora a primeira vez que conhecera a sua casa… amontoado de xistos com reboco envergonhado, móveis a pedir licença pela inexistência, tectos de cozinha mascarrados e a pedir limpeza desde o Eça de Queiroz… não esmorecera…era a sua casa! Com o tempo tornou-se moça viçosa, roliça de carnes, prendada e esperta. O rol de qualidades despertara as vontades e cobiça do Manuel Zarolho.

“Quem casa quer casa”… pois… a muito custo deixara a casa paterna para viver com o marido. De início, encaixara na gaveta do esquecimento os modos ríspidos , a voz entaramelada e o hálito fétido do álcool, mas breve, breve, experimentaria a mão pesada do dono pelos motivos mais fúteis em ritmo cada vez mais intenso e constante. Farta do amor pautado pela lambada e insulto, entornou-se-lhe a água do caldeirão no dia em que, grávida de três meses, fora premiada com mais manifestações do seu carinho doméstico:

- E pára de choramingar! Dás-me azia no estômago! Vai mas é preparar a janta minha porca! Tás na minha casa... fazes como eu quero!

Não! Não era porca porque os bácoros comiam a tempo e horas eram bem tratados e não levavam paulada…

Manuel Zarolho fora ao palheiro, no alto do barranco mesmo a espreitar as margens do rio Ocresa, buscar feno para os animais. Olinda Botelho, toldada pela raiva e pelos anos de servilismo e impotência não pensou duas vezes: dirigiu-se à adega, levantou as sacas das cebolas e tirou a espingarda guardada debaixo do estrado. Rapidamente voltou à cozinha e, por detrás das latas amolgadas de farinha e arroz, sacou dois zagalotes da caixa de cartão que estava aberta. Desatou a correr na companhia de papoilas e calhaus e assim que o viu mesmo antes de chegar ao barranco gritou-lhe:

- Manuel! Ò Manuel! Olha pra mim malvado!.. que lá pró inferno que é pra onde tu vais…não te vais esquecer da minha cara!!

Um bando de pássaros debandou do alto da copa duns quantos pinheiros após o estrondo… Olinda pousou a espingarda junto ao corpo inerte e voltou para casa. Sentou-se no banquinho de cortiça e sacou dum bocado de pão, duma navalha e da chouriça cortada sobre o prato em cima da mesa. Aliviada, mais repousada, escorada na vingança e com o remorso a léguas de distância, comeu uma bucha de pão com chouriço e então sim… sentiu-se em casa… 

sexta-feira, 29 de junho de 2012

A PRETO E BRANCO



Preto e branco, assim estampado em grossa letra de imprensa na prata mágica do chocolate, sucedâneo das melhores marcas “à venda nas casas da especialidade”, que a mãe lhe comprava, numa memória longínqua, enrodilhada em café torrado e feijão branco a granel, na mercearia do senhor Rodrigues, encravada num prédio a cair de podre no declive acentuado da General Taborda, para as bandas de Campolide onde hoje funciona um banco, lembrava-lhe, com clareza, o gesto rotineiro do senhor Rodrigues ao balcão. Após as compras, sacava do rectângulo carcomido de madeira com uma mola a prender meia dúzia de folhas amarelecidas e enroladas onde assentava, no rol, as dívidas, os calotes e a vida da vizinhança penhorada de remedeio omnipresente. O melhor de tudo era quando o senhor Rodrigues oferecia um chupa daqueles coloridos , aos montes dentro dum boião enorme de vidro com tampa vermelha, embrulhado no cinismo das parcelas amontoadas a eito no rol. O chupa sabia a ginjas mesmo sem nunca as ter provado. Outro gesto rotineiro numa praxe instituída, eram os vinte e cinco tostões que a mãe dava sempre ao homem em cadeira de rodas, junto à berma, que se esquecera das pernas, numa mina cravada no meio do mato, naquele pontinho pintado a amarelo no globo terrestre com umas letras a dizer Guiné. Na chegada a casa, derretia paulatinamente o chocolate na companhia do Jornal do Cuto sob o pano de fundo do Simplesmente Maria do Rádio Clube Português.

Saudades… Tinha saudades das memórias doces, do cheiro do café, do chocolate…

Da Mãe… 

MUNDO COMO DEVE SER



No mundo como deve ser juntava de um lado as coisas boas, os sonhos, o sorriso e o olhar, do outro, as coisas más, os excessos e as mágoas. No meio, aquela sintonia doce a tomar conta de ambos,  ainda que distantes, ainda que frágeis, apesar de erros  e mal-entendidos, Deixaria o destino correr no reflexo das palavras  dividido entre o peso  da sintaxe e a ternura da memória ,  sem vergonha ou rebuço, voando longe, na carícia e no beijo, escorrendo desejos e promessas, procurando, sôfrego, o amor…

CAMINHO

O caminho para sair da crise...

A REVOLUÇÃO


Ao certo não sabia qual fora a deixa para entrar em cena. Se o sorriso precário marcado a amarelo torrado, difuso e cinza do tabaco, se pela singeleza da herança genética. Não que fossem más pessoas, antes pelo contrário, o pai  cansara-se da progressão geométrica e linear em semi-círculos sempre às arrecuas  para uma existência chã e sem brilho, e demandara por Lisboa para emendar a vida estragada pela necessidade  acabando por gretar as mãos na dureza do martelo e escopro no andaime. A mãe a servir em casa de uns senhores, embevecida com as histórias que ouvia em serões de tertúlia sobre os feitos e bravatas de Gonçalo Mendes da Maia -  O Lidador, achara-lhe graça e juntara os trapos. Ela por ser séria e apresentável, ele por ser asseado e trabalhador acabando por baptizar o rebento com o nome de Gonçalo, que rapidamente desaguara num castrador Gongas  longe dos augúrios de  grandes sucessos, desígnios e grandeza,  sem direito ou recurso a contestação...
 O filme começara lá atrás onde a memória se perdia entre o sorriso da infância e a ingenuidade da existência sobre um cenário, tosco, parco de adereços, de traço irregular desenhando, de forma infantil, o azul do céu, umas quantas árvores, uma casa com chaminé,  Deus a brincar com as pessoas e o destino a passar rasteiras.
Fosse como fosse, apesar da singeleza da herança genética tinha neurónios, uns quantos, por sinal  funcionais e com terreno fértil ao redor, embora, raramente,   os pusesse  a fazer ginástica. Para além da falta de pensamento lúcido ou iluminado, ou de jeito assim paneleirinho de escrever ( o conceito mais aproximado que encontrava para descrever literatura), Gongas vivia num país politicamente correcto e entretido, alinhado em termos de importância, algures, entre a variação bolsista do Arrentela Futebol Clube e a taxa de câmbio da libra do Burkina Fasso. Assim, seguia-lhe as pisadas decalcadas da modorra empedernida e  da inveja, acabando na  ausência de iniciativa individual.
O pai a insistir para estudar e ele que, teimosamente, fintara letras e algarismos na escola tirando, a ferros, distinta formação em sessões contínuas de matraquilhos. Dali até à idade legal fora menos que um fósforo  e aí arranjara trabalho na fábrica de cablagens. Na idade madura perdera-o e derretera, no imediato, todas as esperanças. Vivia na ignorância, a manifestar-se, bastas vezes, pelo escárnio e pela agressividade a cujo binómio complacente juntara o ócio e assim, acrescido de um grão na asa ocasinal, diluía a vida em carambolas às três tabelas. Farto de ruminar apetites e vontades ao ritmo afiado do infortúnio, com duas prestações da casa em mora e o gás por pagar, mais uma série de pintelhices dessas com paradeiro incerto, decidira-se pela revolução naquela noite de borga escudando-se, para isso , no sólido argumento de duas grades de “mines” com o qual convencera dois vizinhos , matarruanos e convictos benfiquistas sempre prontos para a pancada. Fiat uno de mil novecentos e noventa e quatro, uma granada de recordação da Guiné, uma faca de mato de ir às lapas nos pontões da Cova do Vapor e a  “flóber” que o padrinho lhe oferecera à entrada da adolescência. De olho nos preparativos do exército,  a mulher assomara à janela do primeiro andar, ainda a limpar um pratinho da extinta cerâmica de Sacavém com o desenho de um cavaleiro empinado brandindo uma espada, que o tio coxo encontrara numa obra em que mandou umas paredes abaixo, movida pela curiosidade daquela saída  extemporânea ficando a saber que  eles iam a Lisboa fazer uma revolução que já era tempo
- Pois sim -  Respondeu ela, encolhendo os ombros entre o enfado e a saturação – Pois então, de caminho, passa pela Damaia lá por casa do teu pai e pede para ele abonar vinte éros se não , amanhã, cortam-nos o gás…
De vez em quando, apesar do esforço,  não se furtava à visita de médico que o passe social lhe permitia. Lá ia ele, com o saquinho da Zara com o tupperware dos restos do almoço,  suportar, no olhar, o peso da reprovação pelo plasma, a wii, o telemóvel , o aparelho dos dentes do puto, mais o gajo do banco  a ligar por causa do buraco na conta, agora cratera sem fundo, à sombra de juros, mora e comissões que lhe reduzira o orçamento à condição de destroço. Achava que chegara a hora de contrariar o destino, os anos de ócio e imprevidência.
O carro  transpirava fadiga dos metais em chiadeira incrível na rampa dos cabos de ávila num esforço, digno de registo no manual de mecânica, rangendo fissuras e desiquilíbrios quase a chegar aos oitenta com o vento pelas costas. O plano fora delineado pelo caminho abrindo garrafas a eito sem dó nem piedade: tomar de assalto a RTP anunciando aos microfones a revolução e tomada de reféns se fosse preciso. Armados até aos dentes, com os benfas a gritar pelas jolas com que abasteceram a bagageira delapidando , assim, o engodo para os homens da Securitas, a revolução estava em marcha…ainda que lenta e titubeante.
Roncavam, a sono solto à entrada dos emissores quando, ao amanhecer,   sentiram umas pancadas secas e vigorosas no vidro do condutor e um olhar farejador e inquisitorial ornado com uma farda da Securitas:
- Então que se passa aqui???
Nhec... nhec... nhec… a manivela a baixar o vidro que só desceu pela metade e o Gongas, ainda estremunhado, a esticar o pescocinho fino e esguio e a inclinar, com sacrifício,  a cabeça pondo a testa de fora e, de olhos semi-cerrados, a articular aos bochechos  que vinham fazer uma revolução...
- Pois vão lá revolucionar para outro lado!! Andor que isto aqui não é a Santa Casa!!
O Gongas olhou para os companheiros esbugalhados, as grades de mines vazias e a vontade aflitiva de mudar a água às azeitonas e aceitou, e agradeceu, com um aceno reverencial, o empurrãozinho para ajudar o Fiat a pegar  decidindo, naquele momento, abortar o golpe de estado. Na descida do Monsanto deu uma olhadela de soslaio ao ponteiro da gasolina a cavalgar a reserva e viu que ainda ia muito a tempo de meter  para a IC19… O sol já despontava e o trânsito começava a engrossar. Se se despachasse, ainda o apanhava… era só suportar o tal olhar… um saltinho à Damaia e… sacar vinte euros ao velho para não lhe cortarem o gás…

ENTREVISTA COM MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA


1 – Tendo desenvolvido uma intensa actividade literária e encontrando-se, agora, ligada ao mercado editorial, vê alguns pontos de contacto entre estes dois mundos?  O que tem um a aprender com o outro? É uma mais valia para o escritor? Para o editor? Ou não há vantagem em conhecer “o outro lado”?

Na verdade, a minha actividade literária foi quase sempre simultânea à editorial: entrei no mundo da edição em 1987,embora só me tenha tornado editora em 1998 (que é como tem de ser – embora hoje haja editores que nunca foram assistentes nem saibam o que é rever umas provas). Ainda que tenha começado a escrever poesia muito cedo, só tive livros publicados nos anos 90, já passava dos 35 anos. E isso tem que ver seguramente com o grau de exigência que desenvolvi no meio editorial – só deixar sair os meus livros quando estava absolutamente convencida de que não iria ser capaz de fazer melhor e, por outro lado, quando outros (uma espécie de editores) me disseram que o que escrevia tinha qualidade e merecia a publicação. Mas também a minha actividade literária facilitou o meu contacto com os autores portugueses. Sempre que lhes sugeria alterações, por exemplo, o facto de eles saberem que eu própria escrevia e tinha livros publicados parecia dar uma qualquer garantia de que eu sabia o que estava a dizer. Houve vantagens, evidentemente, em conhecer os dois lados. A desvantagem maior foi ter deixado praticamente de escrever por ter sempre a cabeça cheia de livros de outras pessoas.

2 – Como é escolher um manuscrito? Tenta, de alguma forma, identificar um estilo de autor? “Fareja” o potencial literário e comercial? Quais os critérios que a ajudam a definir a “qualidade” para o grupo Leya?

Seleccionar um original para publicação é sobretudo ler muitos medíocres ou sofríveis à procura de um bom (em suma, uma grande teimosia). Mas, quando se encontra um bom, isso sente-se, não é coisa que se possa definir. No entanto, a sensação mais comum é a da descoberta de uma forma diferente de escrever, de uma voz nova (porque a língua é de todos e fica cada vez mais difícil reinventá-la). Mas há também escritas muito límpidas e directas que fazem excelentes livros, apostando numa estrutura fora do comum em detrimento do trabalho de linguagem. Tudo isto e outras coisas acabam por definir as marcas do autor ao fim de uns quantos livros publicados. Quanto a potencial comercial, é sempre muito difícil conseguir grandes vendas num primeiro livro: as pessoas raramente dão atenção às estreias, a menos que, por um acaso feliz, de repente toda a gente se ponha a falar de um autor, como aconteceu com o José Luís Peixoto quando começou. Por isso, acabo por estar mais atenta à qualidade do que ao potencial comercial. Em literatura, se o autor for realmente bom, mais cedo ou mais tarde – depois de alguns prémios, de preferência – os seus livros começarão a ter vendas significativas. Basta ver o que aconteceu a valter hugo mãe recentemente (o seu primeiro romance vendeu apenas cerca de mil exemplares quando saiu). Há, mesmo assim, que dizer que às vezes existem livros de qualidade que não publico por crer que o número de leitores que o apreciariam não justifica o risco e os custos da edição; mas são poucos, na verdade.

3 – Existe um estilo de escrita tipicamente português ou europeu? Ou, com a globalização e todas as ferramentas de comunicação que nos tornam vizinhos à força, entende que a escrita é, na actualidade, uma mera tradução trans-nacional de um mesmo estilo/tendência/literatura popular?

Na chamada literatura para mulheres (romance, por oposição a novel) e em alguma outra ficção comercial (histórias de vampiros, thrillers e certos policiais, mas não todos) não se consegue de facto distinguir a nacionalidade do autor, a não ser, talvez, se este situar sempre os enredos no respectivo país. Digamos que a linguagem utilizada neste género de ficção é mais global e simultaneamente mais pobre (quase me apetece dizer que nestes livros não existe um «estilo»). Mas, na verdadeira literatura, todos os autores são diferentes, independentemente do país donde sejam, e pode haver dois autores tão diferentes como Gonçalo Tavares e João Tordo a escreverem na mesma época e no mesmo país. Na América Latina, o realismo mágico constituiu de facto uma espécie de «estilo de grupo», de estilo típico de uma região, mas hoje a literatura desses países nada tem já que ver com García Márquez ou Juan Rulfo e os livros de alguns mexicanos ou chilenos podiam ter sido escritos por europeus (li há uns tempos um romance do argentino Andrés Neumann e senti-me a ler um livro alemão ou russo). Enfim, o estilo não é uma questão de país ou continente, embora isso não queira dizer que, por não conseguirmos identificar o país do autor pelo seu estilo, todos os autores escrevam hoje da mesmíssima maneira.

4 – Ultrapassando um pouco as questões comerciais, a editora tenta formar um pouco a sociedade? Vêem-se como uma entidade que tenta ter um papel interventor na sociedade?

Não posso falar em nome da empresa, evidentemente, e acredito que um grupo com tantos editores (de vários géneros e com idades muito diferentes) inclua visões bastante distintas sobre os objectivos do livro, da leitura e da edição. Nem sequer posso afirmar que é pior editor o que se preocupa apenas com o entretenimento – e gera receitas importantes ao «patrão» – do que aquele que vive obcecado com a formação intelectual e não só não gera receitas, como publica apenas para uma elite. Acredito, mesmo assim, que o livro foi até há muito pouco tempo (antes da Internet e da TV Cabo, por exemplo) praticamente a única maneira de conhecermos outros mundos e entendermos a mentalidade das pessoas. E não falo especialmente de ensaio, pois, tanto ou mais do que o ensaio, a literatura tem a capacidade de nos dar a ver realidades longínquas ou desconhecidas através de uma história com personagens inventadas (nos policiais, por exemplo, aprende-se imenso sobre a sociedade). Todos os romances de qualidade são, nessa medida, formadores – e os editores que os seleccionam têm um papel importante nesta formação, a par dos professores, dos jornalistas, das famílias. Porém, tendo-se a edição tornado nos últimos anos uma verdadeira indústria (saem 40 livros por dia em Portugal!), é muito difícil evitar a publicação de livros mal escritos e com deficiências estruturais ou esteticamente deploráveis (logo, que nada farão pelo desenvolvimento cultural do leitor) se o autor for alguém conhecido e, portanto, um potencial sucesso de vendas. A única coisa que me consola é que as receitas desse tipo de livros às vezes servem para publicar outros que se vendem bem menos, mas podem, efectivamente, oferecer qualquer coisa de positivo aos leitores em termos formativos.

5 – Uma última questão: Na situação actual (crise de valores, económica, social, cultural) entende que o equilíbrio se encontrará, algures, no desempenho de um papel de maior relevância da literatura e da cultura em geral ou, pelo contrário, esse papel estará irremediavelmente condenado pela ditadura financeira?

Dizem que por vezes é preciso que as coisas batam no fundo para as nações e as pessoas acordarem para os problemas. Se assim for, podemos aprender muito com esta crise que atravessamos. Os financeiros, no fundo, são os grandes culpados dela – e talvez isso ajude, no futuro, a relativizar a sua importância. Gilles Deleuze acreditava ser possível haver um período de ouro a seguir a um período pobre (em termos artísticos). Vamos dar-lhe razão e ser optimistas: é muitas vezes nas piores condições e nos piores momentos que os criadores produzem a sua obra-prima. É possível que os constrangimentos (económicos, logo sociais) que se vivem hoje levem de facto a um maior envolvimento dos cidadãos e a uma maior necessidade de estes se informarem. Até há uns anos, os mais jovens nem sequer iam votar quando atingiam a maioridade, hoje manifestam-se pelo direito a um emprego nas nossas ruas. Talvez daqui nasça uma geração mais culta e interessada, em lugar de uma geração acomodada que não tem de lutar pelas coisas.  Mas, claro, ainda haverá muitos gestores em todos os ramos que tentarão reduzir a realidade a números. Não é de um dia para o outro que se perdem os (maus) hábitos…

quinta-feira, 28 de junho de 2012

UMA NOITE


Surgia assim, de mansinho, o amor apenas escorado na grandeza da palavra.

“Amo-te”…

...Assim gráfico, poderoso, desnudado, oferecendo-se generosamente sob a forma de letra sem direito a reforma ou protesto, a lembrar-lhes a simplicidade das coisas e eles, esmagados, contemplando-as assim, alinhadinhas, desafiando-os a medir a geografia do desejo onde ambos se consumiam, não tão longe quanto parecia nem tão perto quanto desejavam, adivinhando-se as formas, os olhares, os cheiros a compulsão dos corpos  e o travo agridoce do sexo...

Ao diabo com o mundo, as convenções e o tempo a fugir à sua passagem! Amar era assim, uma longa história de paciência a folhear nos próximos capítulos, com assiduidade. Ele, em ebulição, a pretender-se simples, a dar-se por inteiro, sem remorso, numa dádiva, numa troca sem factura ou recibo em alegre convívio e atropelo e ela a apanhar-lhe o traço em breves pinceladas num curto esboço onde, por breves instantes, o corpo passara a noite, mas o coração hospedara a vida inteira…

A CAVERNA DA ALEGORIA


Nos bons tempos em que passeava preguiçosamente os livros pela escola e em que os furos eram metafísica mais importante que chocolates, lá por volta do 10ºano tirado na Escola Industrial e Comercial Machado de Castro, tida como fonte de onde brotavam, com naturalidade, engenheiros...dos bons...daqueles mesmo a sério com diploma e tudo, havia um antigo professor de Filosofia nascido na era do farmácia com ph e que fôra colega de carteira do Eça de Queiroz, sabiamente alcunhado de "migalhas"dado o seu elevado pendor para esmiuçar o mais ínfimo pormenor da questão, que tinha um modo peculiar de explicar a Alegoria da Caverna...
Numa época ainda dominada pela guerra fria e em que "Muro" e "Berlim" eram sinónimos de pontos cardeais, o migalhas considerava que alguns indivíduos oprimidos e privados das sua liberdades, se movimentavam num mundo de sombras e gritos que tinham, por única realidade, a que lhes era imposta pelos comunistas; a dada altura, o saber e a liberdade democrática dos países ocidentais estendera uma escada para que tivessem acesso à superfície...alguns indivíduos mais afoitos (intelectuais, artistas, dissidentes, etc.) atingiam o topo da escada e viam que a realidade era bem distinta das sombras e dos gritos, no regresso à caverna para trazer a boa nova a atestar a existência de um mundo melhor, os outros, por medo, ignorância e opressão, espancavam-nos, insultavam-nos e obrigavam-nos a todo o tipo de sevícias (sinónimo dos exílios e deportações para os Goulags).
Era com desdém e gozo infantil que reagíamos às patéticas invectivas e tristes reacções do mais profundo anticomunismo primário do velho migalhas, mas hoje, olhando para a nossa situação, é com alguns amargos de boca que relembro essa figura. Na realidade, a pobreza, a miséria, a ignorância e a tristeza constituem as nossas sombras, sabendo nós que, à superfície a realidade é outra, distinta, mas que o nosso "querido líder"  nos vai impingindo a ideia de que nada melhor existe e, teimosamente, insiste em nos manter na caverna...

ENTREVISTA COM CARLOS ADEMAR


Carlos Ademar, nascido em Vinhais em 1960, desenvolveu a sua actividade profissional no âmbito da investigação criminal, tendo a escrita sido companhia permanente desde muito cedo. A veia literária manifestou-se sob a forma de livro em 2005 com o título Crime na rua direita, seguindo-se O homem da carbonária, entre outros. Primavera adiada, o seu último romance, é uma viagem à memória, à Primavera Marcelista e ao final dos anos sessenta dominados pelo medo e pelo desejo reprimido de liberdade. Tive o privilégio de conhecê-lo num curso de escrita criativa. Aliada a uma excelente colocação de voz, a clareza das ideias e a simpatia distribuida a rodos deixou a plateia rendida e àvida de questões como se de uma aula se tratasse. Algumas tive ocasião de lhas colocar na altura, as outras espraiam-se aqui, hoje, numa entrevista generosamente concedida a este espaço.


1 – Conhecendo o seu percurso profissional, a questão é incontornável: o facto de muitos profissionais da polícia se dedicarem à escrita é uma necessidade? Uma catarse? Ou, simplesmente, porque há matéria em bruto para ser trabalhada?

 Nada sei sobre as motivações dos outros colegas que publicam, quanto a mim, das hipóteses que deu, excluindo a catarse, as restantes têm pleno cabimento. Na verdade, o que me impele à ficção é, desde logo, o gosto pela construção de histórias e passá-las à escrita, procurando, o mais possível, que o formato seja agradável a quem vai ler. Depois, é como diz, vivemos profissionalmente tantos episódios humanos incríveis, convivemos com personagens que ultrapassam em muito tudo quanto o mais fantasioso ficcionista pode aspirar alcançar, que considero um desperdício deixá-los esfumar-se num qualquer apeadeiro do tempo para todo o sempre. Com a consciência de que fico aquém do que desejava, ao escrever procuro deixar um testemunho deste tempo que me foi oferecido para viver, com as suas grandezas e com as suas misérias, nunca esquecendo a componente emoção, essencial a qualquer forma de criação.

2- Começou com o romance policial e enveredou pelo romance histórico. É uma viragem definitiva? Um abandono do policial?

Definitivamente, não. Só se pode escrever sobre aquilo que de alguma forma se domina. Tenho a veleidade de pensar que conheço a investigação criminal suficientemente para dela tirar partido em termos ficcionais. Gosto de História o suficiente para conhecer ou estudar os temas que vou abordando nos meus livros. Gosto de política o suficiente para me interessar e ter opinião sobre o que me rodeia e que interfere com o colectivo e, dentro da minha leitura, conseguir perspectivar o que pode vir a passar-se tendo em conta as premissas que valorizo. Estes são os três grandes temas que têm servido de tronco essencial a todos os meus livros. E não me parece que venha a ter grandes dificuldades em duplicar ou triplicar o número de livros que tenho, usando esta tríplice, dando mais ênfase a um ou a outro tema numa ou noutra obra.

3 – Entre os dois registos, policial e histórico, sente que há maior rigor e preocupação estética no romance histórico?

Não! De forma alguma. Em cada livro, tenha ele maior ou menor peso de uma ou de outra temática, as preocupações estéticas estão sempre em primeiro lugar ou, se quiser, no mesmo patamar que a trama e a envolvente emocional. Nenhum livro sai da minha mão para a editora sem que eu esteja convencido de que melhorá-lo mais é impossível naquele momento, isto independentemente da temática que aborda.

4 – Tendo em conta a evolução tecnológica e os novos suportes digitais da escrita que caminho antevê para a literatura?

A literatura em si não se ressentirá desde que sejam encontradas as fórmulas certas para manter o mercado: produção, distribuição, compensação – assuma esta a forma que assumir. Agora, tenho em conta a rapidez com que a tecnologia tem evoluído, estou convencido de que o formato tradicional do livro está posto em causa. Não sei, talvez ninguém saiba, qual o tempo necessário para levar ao seu desaparecimento, mas calculo que não seja muito tendo em conta os últimos desenvolvimentos tecnológicos e o enorme desequilíbrio do preço de produção entre o livro em papel e o e-book. Há duas semanas recebi uma carta da editora a pedir autorização para que os meus livros sejam passados a este novo formato a fim de serem comercializados. Ainda me soa estranho ler um livro sem o folhear, tomar o seu peso, sentir a textura do papel, da capa, cheirá-lo, mas é inevitável, sendo apenas uma questão de tempo. Dei autorização, claro.

5- Uma última questão glosando o título do seu último livro e levando em linha de conta a situação do país… A primavera foi, definitivamente, adiada?

O título do meu último livro, Primavera Adiada, ao ser criado tinha um duplo objectivo: remeter para o consulado de Marcelo Caetano, altura histórica em que decorre a trama, e logo, para as expectativas goradas de muitos portugueses pela postura do presidente do Conselho, designadamente no que respeita à não abertura do regime e à guerra colonial que Portugal travava em África; num segundo plano, o título pretendia referir-se à vida amorosa de Marta, a protagonista, que foi adiando a sua primavera até ao desengano final. Penso, contudo, que a pergunta faz todo o sentido se associamos o título do livro ao tempo presente. O 25 de Abril abriu-nos ao mundo. Portugal pôs fim à guerra e resolveu a questão colonial. Mais tarde aderiu à então CEE e, paulatinamente, os portugueses conheceram dias de grande progresso económico, ao ponto de, com toda a propriedade se poder dizer que, em termos médios, nunca os portugueses viveram com tanta qualidade de vida. A verdade é que as expectativas têm de ser sempre positivas; temos o dever de olhar para cima, tentando igualar os que vivem melhor do que nós. Era esse o objectivo, mas nos últimos tempos as contas têm-nos saído furadas. A crise mundial que estalou em 2008 revelou as nossas fragilidades para vivermos numa sociedade tão aberta, competitiva e global como aquela em que estamos inseridos. Conhecemos o povo a que pertencemos, conhecemos os seus defeitos - a inveja, a mesquinhez, o facilitismo -, e as suas virtudes – a crença em causas justas, o voluntarismo e a capacidade de trabalho. Um dos dramas históricos deste país foi sempre o mesmo: falta de elites competentes. As poucas que emergem, e por isso nos governam, têm os defeitos mais condenáveis do povo, sem possuir as suas virtudes. Foi isso que nos puxou sempre para trás ou nos impediu de seguir em frente. Um pecado quase genético do nosso ser colectivo: falta de visão estratégica. Poucas vezes a conseguimos e quando isso sucedeu, nas Descobertas, fomos grandes no mundo, e atingimos uma projecção muito superior àquela que seria a espectável face à nossa dimensão territorial e populacional.

Luís, obrigado pela atenção e felicidades.

Um abraço

Carlos Ademar

Luis Bento
Segunda-feira, 1 de Novembro de 2010

BOOK - LA REVOLUCIÓN TECNOLOGICA

quarta-feira, 27 de junho de 2012

PERSPECTIVAS II




A NOITE DE SEXTA-FEIRA
Guilherme batia aos pontos Fernão de Magalhães... Após duas viagens de circum-navegação pela cinco de Outubro e vinte minutos de seca esfumaçados sem interrupção... o inquilino do rés-do-chão há muito que dava mostras de vivacidade e impaciência... e ela nem era um "Brastemp"... com menos trabalho e mais cinquenta euros já teria dado o pidafo nas calmas... dito e feito! Pegou no carro e dirigiu-se estrada fora para o bas-fond da cidade...Estacionou perto do Camões e desceu, a pé, a rua do Alecrim.. à porta dos bares. naquele imenso manual de biologia, as distintas classes da fauna exibiam-se em portes lúbricos e miseráveis, entre as meias vermelhas esburacadas e as velhas exibindo sorrisos de onde os dentes, há muito, tinham inciado uma fuga prisional em larga escala, uma houve que lhe despertara a atenção... Ucraniana de gema... era ali que se refastelaria nas delícias pantagruélicas do sexo fácil... lá dentro, contudo, após meia dúzia de shots a vontade esmorecera, o inquilino do rés-do-chão dera às de vila diogo, em seu lugar, o enfado ocupara o trono e a necessidade de recuperar o cansaço de uma noite perdida impulsionaram-no a sair... Além do grizo, a chuva miúdinha acompanhava agora como chorus de tragédia grega, então apercebeu-se dos dois cofres fortes com abertura retardada que vinham no seu encalço... sabia ao que vinham e estugou o passo tentando iniciar a corrida... toldado pelo alcool e pelo cansaço, o chumbo preso às canelas não o deixava correr, olhou para trás e via com pânico, as figuras cada vez mais próximas, esgotou todas as energias na corrida, amaldiçoava agora as baldas às aulas de ginástica no liceu... Estavam cada vez mais próximo, sentia-lhes o trote e a respiração...
- Anda cá melro! - foi a última coisa que ouviu antes da pancada seca na cabeça...


Helena tinha, nitidamente , gozado com aquele parvalhão... ele reentrara duas vezes no bar acenando ostensivamente até dar nas vistas, desmanchara-se a rir...fora ali pôr um ponto final num parágrafo obscuro da sua vida. Ali conhecera Ricardo ali faria a catárse da relação...iniciara uma página, lera o capítulo e chegara ao fim numa leitura oblíqua e sem interesse...àmanhã era outro dia...um dia novo com tarefas a cumprir...

NO SÁBADO DE MANHÃ

Guilherme acordara num repente... o corpo estranhamente molhado e enregelado até ao tutano, a custo erguera-se e olhara em redor... não queria acreditar... na linha do horizonte os seus olhos turvos divisavam o topo das torres do Restelo...após uns segundos de estupefacção atreveu-se a olhar para o próprio corpo...sem sapatos, só com camisola interior e calças... agora que o torpor do alcool se dissipara começara a somar dois e dois... assaltaram-no e deixaram-no descalço em pleno Monsanto...decididamente, aquela que seria a noite da sorte grande tornara-se o dia em que tirara a bola preta do saco... "Rápido! não há tempo a perder..." se se apressar ainda chega a benfica antes da mulher...a explicação para o roubo dos cartões de crédito fica para depois... 


Helena acordara serena, a tormenta de lágrimas dera lugar a uma calma sem precedentes... tinha uma tarefa a cumprir... deitar fora os bibelots, os postais, as fotos, loiças, lençóis tudo, tudo, tudo, tudo o que tinha partilhado com Ricardo... o novo ciclo inicava-se hoje...dele... só ficaria com o essencial... o seu olhar poisou sobre o lavatório onde se encontrava o teste com marca positiva... um sorriso amplo iluminou-lhe o rosto até à alma...


AINDA A SEXTA-FEIRA À NOITE

Ricardo deambulava pelas ruas... tinha feito merda... e da grossa! pusera-se a mandar bolas para o pinhal e andava agora, de cócoras, por entre silvas e estevas peganhentas a apanhá-las...aquilo que tanto criticara nos amigos fôra exactamente fotocopiar...sem tirar nem pôr... A vida organizadinha, os filhos... deixara-se seduzir estupidamente... uma troca de olhares, uma ar moreno a brincar com os caracóis e... meia hora depois já rebolavam no motel da Praça da Alegria num sucessão de orgasmos múltiplos... a pila não mete férias nem goza dias santos ou feriados...nem a educação humanista dos pais tinha evitado o desastre... a mulher descobrira.. "porta da casa é serventia da rua"... por entre os carros estacionados, as imagens sucediam-se no seu cérebro...tudo o que tinha perdido...e nem sequer ficara com Helena... o fósforo da luxúria apagara-se à menor rajada de vento... afloravam-lhe de novo as imagens da sua infância... enquanto garoto... as brincadeiras de bicicleta no parque, as fisgadas aos pardais... sem se dar conta viera dar àquela rua... dirigiu-se para o prédio...tinha a chave da entrada... subiu as escadas e bateu à porta... Alguns segundos depois, timidamente, do outro lado da porta:
- Quem é?
- Sou eu... respondeu Ricardo num silvo...
À porta assomou a mãe...apreensiva estranhando a sua presença àquela hora...
- Aconteceu alguma coisa?
- Não mãe...tá tudo bem...
Entrou na sala... o cordão umbilical é apenas um pedaço de ráfia ensanguentada... o verdadeiro cordão nunca se rompe... e então, não retendo uma lágrima teimosa, aninhou-se no seu colo como nos tempos de garoto... e sonhou com a bicicleta, com as fisgas e os pardais...numa época em que o verbo ainda não tinha conjugação de pessoa, modo ou tempo...

PERSPECTIVAS I


A PERSPECTIVA DELE:

O bar estava compostinho, ambiente cosy , espaço predilecto de trintões e quarentões, empregados discretos e solícitos. Guilherme escolhera uma mesa num canto, de frente para a entrada, o local proporcionava-lhe visão privilegiada sobre toda a sala. Noite de sexta-feira, a mulher fora em Jornada de trabalho da junta de accionistas da empresa, esperava encontrar ali um consolo, uma companhia para os lençóis da luxúria e acabar a noite numa ginástica de cambalhotas intermináveis. Rolando o copo de Gin tónico entre as mãos, do alto dos seus metro e oitenta de Burberry's casual, exibia uma pretensa solidez financeira como isco para o seu charme movido a Old Spice…A fome começava a apertar, o tempo era escasso, a mulher regressaria sábado no final do almoço, a conquista tinha que ser rápida e fulminante… deteve o seu olhar libidinoso e felino de gato manhoso a miar em viela escura, na figura feminina no canto diametralmente oposto ao seu. Mulher, na casa dos trinta, bonita, só frente a um copo… fruta da época pronta a colher…” Boa como o milho toda produzida, boa todos os dias, sozinha... hum… emancipadas emancipadas, mas depois vêm em busca de companhia… deve trabalhar num escritório… casa alugada em conjunto com uma amiga…muito sucesso no trabalho, mas homem nicles…não faz mal…Liedson resolve…” Guilherme levantou ligeiramente o copo numa pose estudada e balofa acompanhada dum aceno de cabeça…a figura feminina correspondeu e exibiu um meio sorriso…Guilherme não mais tirou os olhos da presa…de vez em quando ia vendo a reacção dos presentes, gostava de ser discreto, não dar nas vistas, não fosse outro mais afoito abocanhar-lhe o naco…à medida que a excitação em forma de inchaço ia aumentando, a impaciência ia tomando conta dele…Terrível! Agora que tinha deparado com uma gaja boa…sentia-se desconfortável na cadeira, menino mimado exigindo o brinquedo de imediato, os olhares e os gestos apontando para a porta iam aumentando de intensidade… ela pareceu esboçar um aceno de cabeça enquanto olhava em redor… - Perfeito! - divagou Guilherme…a noite está feita…é melhor não dar nas vistas espero à porta do bar…espero que ela saia rápido…lá fora está um vento e um grizo do caraças…

A PERSPECTIVA DELA:



Helena tinha escolhido uma mesa no canto do bar…não era intenção sua afogar mágoas num copo de Wisky... lágrimas… tinha derramado calçadas em dia de chuva…apenas um ponto de ordem á mesa da paixão…fora ali que conhecera Ricardo, sim era casado, sim…o coração racional de mãe galinha tinha-lhe dito: “ele nunca vai deixar a mulher, são muitos anos.” Pois sim, mas aquele olhar, aquele humor, aquela maneira terna e forte de tocar , aquele ar de menino/homem faziam-na sentir uma mulher especial, faziam-na sentir: a mulher!...dez anos mais velho, colega de trabalho, insatisfeito com o casamento que há muito se tornara campo de batalha verbal por qualquer palha ou erva daninha…aquele olhar era o olhar de um homem apaixonado,,. a navegar para o mesmo rumo, juntos, segurando o leme do barco que pretendiam levar para bom porto, de preferência, seguro e distante… Não lamentava, apenas dava como perdidas as horas de entrega total, o entusiasmo na busca de casa para ambos, a compra de acessórios e bibelots para a nova casa…É Ricardo... uma mulher quando se entrega é contra tudo e contra todos… acredita no olhar, nos gestos e nas palavras…”precisavas de mais tempo para lhe contar”… dei te minutos, precisavas de “escolher o melhor momento”... e eu somei mais uns ponteiros no mostrador de um relógio que teimava em trabalhar…”Amo-te muito” foi frase que vomitavas na constância dos ritmos frenéticos com que nos amávamos no patamar entre a Contabilidade e a Informática, no final apenas querias saciar a fome em várias posições…ao menor sinal de projecto em comum, de vida única preferiste voltar para o comodismo da camisa engomada apesar do cheiro a fritos e dos rolos no cabelo… pois que tenhas saciado a pança... que te faça bom proveito ou diarreia descomunal… para o caso, pouco me interessa o teu desarranjo intestinal... és tu que perdes mais a desgraçada que contigo vai coabitar até que a morte vos separe… não percebes pois não? Uma mulher quando ama entrega-se sem receio do futuro ou das vozes dissonantes…o homem corre a abrigar-se na toca, por mais funda ou fria que seja, ao menor sinal de rumor negativo…o que me dói não é a solidão sabes…o que me dói é que pensava seres a minha cara metade e, afinal revelaste ser a outra face de uma moeda sem valor na bolsa da vida…que é isto? Era o que me faltava aquele parvalhão a olhar para mim…não pode uma gaja estar a beber um copo sozinha…que..."ou quer encosto ou é vaca a matar cabritos". E ele insiste… agora não pára de acenar, deves pensar que és o Brad Pitt da Madragoa. Pensam que basta um palminho de cara para nos levar à certa… levantou-se… uff… vai-se embora…vou acabar a bebida... só preciso de um abraço forte, terno e um aconchego no casaco para me tapar os ombros… lá fora, o frio, em rajadas finas, corta-nos a alma em pedaços…

(continua)

ENTREVISTA COM RITA FERRO



Estávamos em 1991, quase, quase… a terminar a faculdade quando veio parar, às  minhas mãos,  uma edição  do Círculo de Leitores de O Vento e a Lua… Tinha um teste de Latim na manhã seguinte, cadeira que trazia em atraso desde o segundo ano. Para bem dos meus pecados não resisti a folheá-lo . Duzentas e cinquenta e três páginas, das quais, li sôfregamente cento e oitenta e quatro. Deitei-me às quatro da manhã, fui fazer o teste às nove e, mal saí da sala, devorei as restantes até ao fim. A partir daí fui sempre acompanhando a sua escrita, rendido, a meio caminho entre o fascínio e a devoção. A sua escrita, solta, mordaz e irreverente não deixa margem de manobra à indiferença. Recentemente encontrei-a no seu blog Acto Falhado onde mantém uma tertúlia permanente sobre o nosso quotidiano. Uma razão a acrescer a tantas outras para não lhe perder o rasto. À pequena biografia retirada da net, resta-nos apenas deixar as perguntas a que Rita Ferro amavelmente acedeu a responder e dizer que, naquela manhã, acabei por conseguir passar a Latim…
Rita Ferro nasceu em Lisboa em 1955.
Estudou Design e Marketing, exercendo funções de direcção e consultoria em diversas empresas, na área da publicidade. Foi professora no IADE e colabora regularmente na imprensa, rádio e televisão.
Iniciou-se na escrita em 1990 com o romance O Nó na Garganta, arriscando um novo tipo de escrita feminina – sensível, intimista e geracional – que, tendo obtido um estrondoso sucesso e revolucionando o mercado literário português, conheceu inúmeros seguidores. Hoje, tendo já transcendido as questões femininas, ou não se esgotando nelas, distingue-se por uma técnica de narração mordaz e cativante, de grande versatilidade, tanto no épico urbano de Os Filhos da Mãe como no realismo fantástico de O Vento na Lua.

Entrevista Luís Bento
Bento-vai-para-dentro
14/2/2010 


1- “(…) movida por uma curiosidade insaciável, Pompeia encetava então um fantástico percurso de nómada, cruzando o seu destino com múltiplas personagens (…) o velho irlandês (…) que procurava saciar com bolos a sua fome de afecto”

Extrapolando, poderemos afirmar com segurança ser esta a função do autor? Encetar um percurso nómada por entre palavras e personagens saciando afectos à medida dos parágrafos?

(risos) A pergunta é difícil, sabe? É como pedir à centopeia para explicar como se move – preocupada, troca os movimentos e cai. Não sei, Luís. Não sei mesmo desmontar o processo. Sei que há dois tipos de escritores: os que fazem esqueleto prévio, desenhando minuciosamente as personagens e a história, e outros, como eu, que se sentam, pousam os dedos no teclado e se limitam a seguir o som da flauta. Mas o termo nómada ajusta-se a mim: sou um ser errático, na vida e nos livros, e aventuro-me sempre por caminhos que não conheço, ou seja, não me afeiçoo a nada no livro, estou sempre disposta a abandonar um caminho e a tomar um atalho para agarrar uma ideia que me chegou à cabeça e me empurrou violentamente noutra direcção, como num ciclone. Por vezes, chego ao fim do livro sem saber como terminá-lo, mas a resposta vem sempre: acordada ou a dormir. Quanto a saciar-me não é exactamente o termo. Vou puxando um cordel que puxa as memórias, as quais, por sua vez, puxam as emoções. Mas é um processo frio, desapiedado, cruel: olho as palavras que escrevo sem o menor derriço. Quase como um aluno com um atraso mental que quer passar de exame e eu estou ali, pronta a chumbá-lo, sem coração. De resto, é como quem toca de ouvido.

2 – Em, “O vento e a lua” a descrição brutal do ambiente de miséria em que Pompeia é gerada contrasta largamente, com a mestria de uma narrativa que nos conduz ora com amargura, ora com doçura e suavidade permitindo-nos levar para uma multiplicidade de escritas, gestos e sons, muito para além das imagens e cânones convencionais. Seguiu alguma das “receitas” sobre a arte da narrativa ou, pelo contrário, pretendeu fazer uma ruptura e seguir um novo caminho na descoberta e exposição do corpus literário?

Não, Luís, lembro-me de ter fixado apenas dois conselhos dos meus: a minha avó poetisa disse-me «a simplicidade resulta» e o meu pai escritor «escreve o livro até ao fim e depois deita fora metade». Não sei se os segui, porque sou rebelde a seguir conselhos, ou melhor, não é rebeldia é não poder ser se não eu. Nem na vida peço conselhos, quase nunca peço conselhos. Aproveito os meus recursos naturais, sigo o instinto. Não sei se é mau se bom, mas é como lhe digo.

3 – “ O vocabulário, grande recurso da cultura, é o inimigo do pensamento. Quanto mais aumenta mais ele se vê embaraçado – embaraçado por móveis pesados e fixos, por corpos mortos – e privado do seu espaço” (Jean Dubuffet) Concorda com esta afirmação? O Excesso verborreico conduz à atrofia do pensamento cabendo ao autor a domesticação das palavras?

Hoje em dia, sim. No livro que escrevo neste momento, e é biográfico, o preciosismo lexical deixou de me preocupar e a despedida fez-se sem lágrimas (risos) E penso que sim, que foi uma evolução. Um pouco como os escritores que têm de saber desenhar um corpo humano para se permitirem a fazer um risco numa tela em branco. Já superei essa prova, sinto isso. Repare, só agora me apercebi desta mudança, evolui-se sem se dar por isso e sem sequer apascentarmos esse sonho, sem sequer ser um sonho – é um estado a que se chega, um novo nível. O vocabulário não me interessa tanto, procuro agora formas mais enxutas de falar para que a narrativa sobressaia mais do que o estilo. Quanto ao excesso, penso que não conduz à atrofia do pensamento, mas distrai o leitor do recado que se quer passar. Tornei-me muito mais económica no estilo, muito mais, e espero que isso obedeça a uma maior maturidade e que essa maturidade se transcreva no livro. A ver vamos, é cedo para falar.

4 – “ Sexo na Desportiva “é uma recolha das suas criações de maior êxito em A Bola e no Correio da Manhã, escritas entre 2005 e 2006, juntamente com alguns inéditos.São textos sobre encontros e desencontros amorosos, onde não escapa o sexo. E o seu leitor? Não escapa a quê?

O meu leitor, o leitor daquele livro, não escapa a rir-se se tiver o mínimo de sentido de humor. São micro-histórias com piada, cada uma sobre um desporto diferente, parte delas ousadas. Não me censurei nos temas, mas tive cuidado em preservar o bom gosto. Escrever sobre sexo estabelece esse desafio e permite esse exercício.

5- Uma questão assassina: Será o famoso bloqueio de escritor o tal… “Grau zero da escrita” ?

Não, e ainda bem que pergunta. O bloqueio sucede tanto aos que estão no grau máximo como no mínimo, indiferenciadamente. A mim, esse tipo de apagão de ideias nunca ocorreu. Mas tenho outro tipo de bloqueio que é igualmente exasperante: a falta de vontade. Nunca ninguém fala disto e acontece muito aos artistas. Há livros que não querem ser escritos, o meu pai vivia a contrariar os dele. Anunciou uma trilogia cujo nome não interessa agora, mas só conseguiu entregar os dois primeiros volumes. Lutou com aquele bloqueio anos e morreu sem conseguir terminá-lo. Às vezes há uma recusa interior muito funda que não se compadece com nada, nem com a necessidade económica nem com as exigências contratuais. Uma musa caprichosa e malcriada que o artista tem de aturar. Os outros chamam-lhe preguiça, mas não é. Funciona como um travão: «poderia escrever, mas não sinto vontade.» É tramado. (risos)


Luis Bento
Domingo, 13 de Fevereiro de 2011

terça-feira, 26 de junho de 2012

O CHEIRO DA CHUVA


Na sua pressa, o mundo virara-lhe costas e não lhe dera tempo de agarrar o sonho. Ao certo não sabia em que ponto se perdera na angústia e descambara na resignação. Por isso, vivia a vida imaginando-a, gastando horas em recordações e leituras. Alheia à mulher sentada a seu lado que, de sorriso escancarado até ao esófago debitava decibéis de desinteria verbal, entre a pedra mármore da cozinha e a prima, tontinha, internada no Júlio de Matos que ficara bem nas fotografias por causa dos oito megapixels da fabulosa máquina, oscilava entre a observação do espécimen a quem a vida reservara metade de coisa nenhuma, o caderno aberto diante de si e o legítimo saborear do café anestesiado com duas grossas colheradas de açúcar.

Algures entre o cheiro da chuva a cair na terra húmida e a menina desenhando corações com o indicador direito sobre o bafo colado na vidraça, as recordações e as linhas tomavam forma nas histórias do António Roscas que torneara a alcunha na fábrica de porcas e parafusos falida até à medula, no Manel que andava lá fora a lutar pela vida ou na mãe que, de ouvido sintonizado na rádio em frequência modelada de dor , enviava a proverbial notinha de vinte escudos no cabograma acabando por arrastar os joelhos rasgados, em Fátima, pelo regresso do irmão de África que perdera uma perna e deixara lá a alma inteira. O que mais guardava de precioso era a imagem do outono a bater à porta, as camisolas de gola alta a picar no pescoço, a avó com as mãos ásperas numa carícia dengosa, o peixe frito a pingar óleo na toalha em noite de sexta- feira santa para não cometer pecado, os reis e rios de Portugal decorados na ponta da língua e o cheiro da chuva. A memória era um fio condutor despojado de vontades, em corrente contínua, onde, pelo meio, sobrevinham as mágoas. Tinha muitas, mais que pedras no caminho e nem castelo ou muralha ou verso do Pessoa lhe apagava o sorriso, para além de que gostava de linhas escorreitas, palavras doces e chocolate amargo. Escrever não era mais que ler parágrafos alinhavados pelo tempo e, se este não era mais que uma sucessão vertiginosa de coisas por fazer que lhe desarrumava a vida, formatada para aceitar o infortúnio com naturalidade, às vezes era na doçura da palavra e no travo amargo do chocolate, arrastados pela memória, que fazia um intervalo, percebendo então que assim, o mundo andava bem mais devagar…

ENTREVISTA COM LUÍS SEPÚLVEDA

Uma vez falaram-me no "Velho que lia Romances de Amor", comprei-o... e, de uma assentada, li todos os seus romances. A capacidade de efabulação, as descrições, as personagens, os ambientes são reveladores de uma vivência em prol de causas e de justiça. É uma grande honra poder publicar aqui, hoje, esta entrevista que Luís Sepúlveda tão generosamente concedeu.

Luis Sepúlveda 12/3 às 15:36

Estimado amigo Luis: de acuerdo, mándame esas preguntas y las responderé con mucho gusto
un abrazo
Luis
1 -Además del trabajo, el talento y la inspiración encontrar sus experiencias son una constante en su escritura. Su escritura es la encarnación, el retrato de estas experiencias o, por el contrario, fueron las experiencias que llevaron a la escritura como un vehículo para la voz de desacuerdo con las injusticias?

Luís Sepúlveda: Supongo que las dos cosas al mismo tiempo. Siempre he sido un hombre de izquierda, es decir que tengo un fuerte concepto ético de la vida y eso está siempre presente en lo que escribo. Soy un hombre, un ciudadano atento a lo que ocurre en el mundo, y esa atención de transforma más tarde en literatura.
2 -Recientemente ha mostrado su profundo pesar por la victoria de la derecha en Chile. Estas victorias de las derechas quieren decir qué? La memoria de la gente es corta? Una reconciliación con el pasado? O algo falló en la izquierda?
Luís Sepúlveda: La victoria de la derecha en Chile significa que el llamado "centro izquierda" que gobernó durante veinte años no logró la confianza de los chilenos. La pesidente Michelle Bachelet terminó su mandato con un 84 % de aceptación ciudadana, pero el candidato del "centro izquierda" no convenció a nadie, además, hubo orto candidato también auto denominado de "centro", Marco Enriquez Ominami, que construyó el triunfo de la derecha. Y el triunfo de la derecha demuestra además que la izquierda aún no tiene un proyecto político convincente. El pueblo no tiene la culpa de lo que hacen o no hacen sus dirigentes.
3 -En su escrito, junto con una excelente descripción de ambientes y una enorme capacidad para contar historias, hay espacio para las grandes causas en un aura de romanticismo. Ese es el secreto? Una cierta aura de romanticismo en la lucha por los principales problemas y las causas?
Luís Sepúlveda: No me siento un romántico pues a los románticos los mueve una especie de compasión individualista y yo creo en el esfuerzo colectivo, en la lucha de todos. Sucede que , simplemente, a veces el escritor tiene que ser la voz de su época.
4 -Ser un escritor de vida y de la escritura y como lengua materna hablada por 500 millones de personas, ¿alguna vez sintió acondicionado y trató de escribir de una otra forma o, por el contrario, esta responsabilidad le dio fuerza para no estar condicionado?
Luís Sepúlveda: No, nunca me he sentido condiconado. es cierto que pertenezco a una lengua compartida por casi 500 millones, pero el español es mucho más que es; es la pertenencia a una comunidad cultural profundamente contradictoria, a un crisol de diversidad cultural, social, política, étnica, económica , y esto genera un sentimiento de responsabilidad.
5 -Hoy en día, "los viejos todavía leía novelas de amor?"
Luís Sepúlveda: Creo que sí, ha estupendas novelas de amor.

Luis Bento