Acompanho as suas crónicas
no jornal Expresso desde há longo tempo, bem como a sua presença corrosiva e de
grande assertividade, nas redes sociais. Não podia ficar indiferente à sua
estreia no género romance com o livro "O Centro do Mundo", da Quetzal,
bem guardado na minha estante, como documenta a foto. Li-o de uma assentada,
fascinou-me a estrutura, as referências literárias, o humor e a solidez de um
projecto literário definitivamente consolidado. Ana Cristina Pereira Leonardo é
colaboradora do Expresso, onde assina uma crónica e
crítica literária, é também tradutora e revisora e teve a generosidade de
conceder uma pequena entrevista ao nosso blogue.
1. Como surgiu a ideia para "O Centro do Mundo"?
A ideia surgiu há já uns anos, quando soube da passagem por Olhão - cidade
onde nasci - de Boris Skossireff, russo branco nascido na Lituânia com um
percurso de aventuras extraordinário que cobre as duas guerras mundiais -
passando pela Revolução de 1917, pelo nazismo e pelos gulags da Sibéria -,
tendo chegado a ser Rei de Andorra durante uma semana, até acabar preso e
expulso do então Principado pelos espanhóis.
2. "O Centro do Mundo" é um romance com uma estrutura fragmentada
onde sobressai uma aturada pesquisa, muita referência histórica e cultural.
Quer falar-nos um pouco sobre estes pontos?
Gostava que ficasse claro que "O Centro do Mundo", apesar de ter
como ponto de partida/pretexto uma personagem de carne e osso, não é um romance
histórico. Não pretende fidelidades nem retratar qualquer época. Pessoalmente,
tanto me interessava o russo como Olhão, a "vila da Restauração"
cantada por Zeca Afonso. O contraste/ proximidade entre as duas realidades, o pícaro olhanense e o aventureiro ficcionista de si próprio, era o que estava em
causa. Dito isto, não acredito muito em narrativas que partem de uma ideia. A
literatura é do domínio da palavra. No caso, a organização das palavras foi o
mais difícil. Como estruturar uma ficção que não se quer "organizadinha",
nem historicamente cronológica, mas que, com risco de se tornar ilegível, não
pode ser apenas caos? A estrutura fragmentada - que imita a vida? - calhava a
Boris e calhava a Olhão. A Boris, porque ele próprio foi/é um enigma que não se
deixa aprisionar e cujo percurso, sobretudo reactivo, se apresenta sob o signo
do acaso e da necessidade. A Olhão, porque, sendo um lugar que rebenta pelas costuras de "anarquistas" (ou "comunistas", para roubar a expressão a Raúl Brandão), lida mal com a ordem e a autoridade (incluindo a do narrador). Assim, a
estrutura de "O Centro do Mundo", artificialmente natural (?), foi a
que me pareceu mais adequada. A pesquisa não foi assim tanta (Boris, que eu
saiba, ainda hoje resta por biografar com rigor), e as referências históricas e
culturais, olhando-as à posteriori, tanto serviram como divertissement (meu e,
espero, do leitor), como diálogo no interior da própria literatura, algo que me
parece indispensável a quem escreve. Talvez o que eu pretendesse dar a ler
fosse tanto a comicidade como a tragédia, à imagem de muitos dos meus
escritores de eleição. Se consegui ou não, os leitores dirão de sua
justiça.
3. Projectos de escrita para o futuro? Algum outro romance na calha?
Trabalhando eu com palavras, não creio, no entanto, que seja obrigatório
dar-lhes a forma de romance. Mas, como já disse algures, a ficção pode ser tão
aditiva como o sexo. Quanto mais se pratica, mais vontade temos de praticar. Há
qualquer coisa na calha, mas vamos ver se ganha forma.
Muito obrigada.