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A mãe dissera-lhe, em pequeno, que se fosse sozinho na vida seria um 
cabeça no ar e ele encolhia os ombros e voltava-se para a floresta que 
se estendia à sua frente, emoldurada na janela do casarão antigo, 
herança de família que muito custava a manter hoje por força das 
finanças. A casa fora ganha ao jogo pelo seu bisavô, que roído pelo 
remorso, distribuíra todo seu dinheiro e propriedades por gente 
necessitada deixando o imóvel a cargo da família. Do alto da copa de 
três castanheiros voaram alguns corvos que lhe pareceram abutres atrás 
do cheiro de carne putrefacta de guerreiros japoneses tombados numa 
planície. Tinha noção do tamanho fértil da sua imaginação perdida no 
meio de índios e cowboys da infância, naves espaciais e legionários 
romanos. Para além da imaginação, fazia versos. A mãe tinha apreço, como
 dizia habitualmente, por ele se mostrar um rapaz sensível, mas temia 
que isso se tornasse numa imprudência. A poesia, com o que ele deitava 
cá para fora, podia ser um óptimo divã para psicanálise, mas colocava-o 
em risco ao expor de forma tão desabrida o que lhe ia na alma e poderia 
acabar por ter que pagar uma tremenda factura. Em pequeno, era um rapaz 
muito linear, contido nas palavras que não fossem poéticas. Gostava de 
ficar, aos domingos de manhã, a ver documentários sobre bichos, 
florestas exóticas, populações indígenas e logo a seguir ao almoço, lia 
as tiras de banda desenhada dos jornais depois do pai fazer as palavras 
cruzadas. Durante a tarde dormitava e lia uns versos de Sophia, à noite,
 para tirar o fastio das letras via um episódio do Homem Aranha no canal
 dois. Nas suas leituras e pensamentos sobrava espaço para pensar na 
morte por encontrar nela uma harmonização, uma espontaneidade disponível
 e democrática. A sua dedicação ao estudo da poesia e da morte, o seu 
interesse em forças ocultas e temas de baixo relevo no pensamento 
filosófico cresceu com a idade adulta e advinha da sua convicção de não 
se sentir propriamente dotado para o que quer que fosse, interessando-se
 por aquilo que os outros consideravam não ter interesse. Isso 
trazia-lhe alguma auto-estima pela superioridade do seu gosto pelo 
artístico e pelo sublime. Achava que ser normal era muito mais difícil e
 dava muito mais trabalho, sendo mais fácil abandonar-se a uma estrutura
 minimalista, outras vezes achava que era precisa muita coragem para se 
sentir perdido e que a realidade era, por si só, suficiente para o fazer
 perder tempo e que ele só inventava coisas porque estava desempregado, 
era alarve, insaciável e manifestamente indecoroso, contendo-se para não
 ficar refém da felicidade.
 
 
