quinta-feira, 29 de setembro de 2016

FRAGILIDADE



Antony Goomley

* A minha crónica desta semana na Revista Caliban

https://caliban.pt/fragilidade-1e0185eeb015#.hkenojp77



O mundo está frágil, de uma fragilidade constante que compromete a nossa segurança e nos faz distrair com minudências. Torno-me claro quando escrevo, de forma coerente, sobre a memória que me chega às prestações ou é o dia que se torna leve quando junto palavras para recordar coisas boas e outras assim-assim, como o senhor Manuel a chorar mágoas, no regresso apressado de Angola resumido à categoria de sonho, com léguas de distância, trinta anos e mãos vazias.
Trinta anos depois já era muito tarde para se recomeçar o que quer que fosse…
muito tarde”,
expressão castradora, por sinal, o caminho mais curto e irreversível para acabar de forma atabalhoada e peculiar na inércia que teima em acompanhar-nos ao longo de séculos.
Aos poucos, acabamos por voltar sempre ao sítio das recordações, novelo de corda, sem fim, afundando-nos lentamente, neste cais, parapeito imenso, onde apodrecemos numa espera antiga e viciada, sem vontade ou iniciativa, sem alguém que ponha mão nisto, que pense por nós, com ideias e energia suficiente para acabar com a nossa desgraçada facilidade com que continuamos alimentar a mediocridade endémica, que se põe em bicos dos pés para “inglês ver, sequela da orfandade adquirida em Alcácer kibir e que continuamos a amenizar. O paradigma da sociedade mudou, mudou-se, mudou-nos, inebriados que estávamos com o bem-estar, o dinheiro e o conforto a quem prestamos vassalagem descarada. A superficialidade e o ressentimento mantêm-nos ocupados. Tornámo-nos mutantes e vivemos vidas de empréstimo nas novelas ao sabor de cada novo episódio. Fazemos sacrifícios, gozamos com a tragédia, não queremos chatices, evitamos o confronto, aceitamos tudo, esfregando as maõzinhas como o Eusébiosinho do Eça e assim nos perpetuámos e perdemos relevância no grande drama histórico universal a gastar tempo com insignificâncias, tudo aconchegado pela falta de leitura e reflexão, aceitando regras com remoques, receita ideal para o pandemónio em que a nossa existência se transformou e que, paulatinamente, ajuda a desmantelar a frescura, a personalidade e a nossa vontade colectiva, se não nos desfragilizarmos a tempo…



sexta-feira, 23 de setembro de 2016

VERDE



Creative boom

"Ele tocou-lhe sem querer no braço, trocaram o olhar e ficaram em silêncio. Sorriram, beijaram-se, acordaram na casa dele. Se ficar - pensava ela - vou trocar esse tom verde seco do tecto..."


segunda-feira, 19 de setembro de 2016

DERBY






Ele sempre manifestara uma paixão sem tamanho pelo seu clube de eleição e expressara, desde cedo, o desejo de ser cremado e que fossem atiradas as cinzas ao ar durante um derby em Lisboa, no momento em que se gritasse: “Gooooooolo”.

Consultaram-se notários e solicitadores, lavraram-se actas e escrituras, selaram-se ordens e documentos. E Ele morreu.

A família chorou e mandou cremar, rezar missas e riscar dias no calendário até perto do final do campeonato. Compraram bilhetes para o derby e convidaram a gente mais chegada entre família, amigos e um ex-presidente de junta a quem deviam favores e pagaram as passagens de comboio. Já quase perdiam a esperança quando, no último minuto da partida, esfuziante e roxo de berraria, o comentador deu rédea às cordas vocais e derreteu os últimos decibéis com a tão esperada frase: “Gooooolo! É gooolooooo!

E a família lançou as cinzas fora da caixa deixando que se espalhassem, levadas pelo vento, pelas bancadas, pelas cabeças e pelas bocas escancaradas, com um leve sorriso de alívio e de satisfação por ter sido cumprido o último pedido do moribundo. Ecoava ainda a gritaria pelas bancadas agitando-se bandeiras e cachecóis com fervor, preparando-se, todos, para um final apoteótico, não fora, o golo ter sido anulado por fora de jogo…


quinta-feira, 15 de setembro de 2016

DESENHO



A minha crónica na revista CALIBAN 

https://caliban.pt/

Quadro de Gilberto Gueereiro - pintor artístico catch@live.com.pt

Ainda não aprendi a acreditar em Deus. Vou do céu ao inferno num fósforo, mas penso pela minha cabeça sem cair nessas tretas da Virgem, bonita, de vestes brancas, de coração aberto para nos salvar das chamas, das profundezas do mal e de muitos outros suplícios por via das orações diárias com silícios e urtigas esmagadas nas mãos em concha. Quanto muito, poderia andar à boleia do catecismo soft a imaginar, sem grande dificuldade, feiras de santinhos, relíquias, amuletos, crucifixos, velas de cor e pagelas com hóstias coladas a fazer publicidade à padaria portuguesa. Sou um cínico, apesar disso consigo andar em paz, algumas vezes, sossegado, enquanto a chuva desaba nos plátanos e nos aciprestes da mata que vejo das traseiras da minha casa de fim de semana. Às vezes gostava de me encontrar com o passado, mais ou menos no momento em que, naquela infância despreocupada e crente, as minhas dúvidas deixaram de ser brincadeira e se tornaram coisa muito séria. Normalmente é assim, temo-nos em conta de boas pessoas apesar do azedume, do rancor e da inveja. Sem darmos por isso, acabamos numa angústia, a circular em torno do enfado com que contamos as mesmas histórias, pesadelos e mazelas. Gosto de olhar pela janela e adivinhar as horas. Devem ser quase umas seis da manhã, o rio ainda não perdeu o tom escuro riscado pelo fio de prata da lua cheia. As pessoas começam a formigar nas ruas para o emprego, os telhados a abrigar murmúrios e restos de sono de gerações, a igreja com a sua torre lá no alto, a acumular séculos de fé e pedras e tudo continua sereno e inalterável, como se a vida fosse um percurso linear, um equilíbrio de mudas cumplicidades, a que assistimos, impotentes, antecipando acontecimentos. Era isso o destino, talvez. Lembro-me de pedalar num triciclo azul, ferrugento, com assento de madeira áspero e cheio de falhas e gretas. A vizinha deixava-me ir brincar para o quintal e eu ficava ali ás voltas, às voltas, acreditava que se conseguisse fazer umas mil voltas ia ter ao centro da terra, depois ficava tonto e cansava-me e dizia para mim próprio que amanhã ia conseguir ou continuar, uma vez que as mil voltas não precisavam de ser todas no mesmo dia… E sempre que volto à pureza destas memórias esqueço-me de que a morte existe… A maior parte das vezes faço-me de estúpido e percebo que pode ser muito divertido. É um refúgio como outro qualquer. Toda a gente deveria ter uma oportunidade para ser feliz e, acredito, que a minha ainda esteja para vir, apesar de me distrair com o supérfluo e ficar sem vontade para o que realmente me poderia realizar. Tarde ou cedo, a saudade vem sempre para conversar comigo, tudo o mais é ruído num passado que nunca deixou de ser real e num presente que ainda não percebi bem se é desenho ou ficção.

domingo, 11 de setembro de 2016

A SANTA CHINESA





Loja na Almirante Reis com material de canalização, brinquedos, loiças e bric-à-brac





Às vezes só existimos dentro da nossa cabeça, quando fazemos algum disparate que nos dê importância ou quando recordamos o passado, enquanto o silêncio não nos mata aos bocadinhos. 
Em miúdo, o irmão mais novo do Fanan, que regressara estropiado de Angola, invejava-nos e ficava muito hirto à frente da nossa casa a atirar pedrinhas contra a janela do rés-do-chão, já que não tinha força para atingir o segundo andar, mas sem partir os vidros, era só para nos aborrecer nem sei bem porquê. A minha mãe dizia que era das invejas, que as pessoas tinham o olho gordo e benzia-se com frequência, acabando por comprar uma pequena estatueta da Santa chinesa, que ela achava ser de porcelana, a quem fazia um pedido e lhe retirava a mãozinha, que se desenroscava e só voltava a colocá-la no orifício depois da graça concedida. A vizinha do lado, que publicava anúncios nos jornais a pedir milagres em barda a São Judas Tadeu, desesperada pela falta de respostas, pediu-lhe a santa emprestada por uns dias. 


Quem empresta não melhora… E é bem verdade…


Acabou por cedê-la e a amizade terminou no momento em que ela lha devolvera sem a mão. Nunca soube ao certo como acontecera. Apesar de a ter colocado em local seguro, a mãozinha, trabalho fino e precioso de artista, razão de muitos momentos de ansiosa esperança, desaparecera. A minha mãe que queria que eu fosse para médico ou professor, antecipava culpas e atribuía responsabilidades à negligência grosseira da vizinha, o meu pai que colocava no mesmo nível médicos e talhantes, não via nisso grande mal no mundo, desde que fugisse da cultura que não enchia barriga.


Mestre de obras! Mestre de obras é que era bom, engenheiro técnico era ainda melhor! 


Nem uma coisa nem outra, que não tinha queda para a régua e esquadro nem estômago para sangue e miudezas. A mãozinha nunca apareceu, a santa perdeu-se na mudança de casa, da vizinha nunca mais houve notícias, assim como de graças concedidas, excepção feita ao milagre de acordar todos os dias, até ao momento…


quinta-feira, 8 de setembro de 2016

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

ACABARAM-SE AS FÉRIAS!






E pronto! Acabaram-se as férias!

Quatro mil seiscentos e tal quilómetros de carro (ida e volta). 

Saída às seis e meia da manhã, directo a San Sebastian, novecentos quilómetros (fáceis) com paragens, mesmo a tempo de comer uns pinchos e experimentar as águas quentes e sem ondas da praia da Ondarreta.  
Muito azul, muito verde, muita animação. 


Depois... Depois Bordéus, Nantes, Rennes, Bretanha, Brucelândia, Saint Malo, com passagem obrigatória pela Utah Beach, Omaha Beach e pelo cemitério americano para que não se esqueça a memória.




Le Mont Saint-Michel logo a seguir, um salto a Fougéres, o regresso por Saintes, e o descanso em Vitória-Gesteitz para terminar, em beleza, no País Basco. 


Trânsito condicionado: Só ciclistas e girafas às riscas...


O muito que há para relatar fica para um prometido diário de bordo com peripécias, fotos, dicas, restaurantes, hotéis, museus, manifestações, graffitis, motards, "moules frites", ostras, gente simpática e o que mais se aprouver, a sair brevemente...