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quarta-feira, 17 de abril de 2019

MORAR NOS OLHOS DE UM GATO

Esboço de Maria de Fátima Santos


Conheci a Maria de Fátima Santos por ocasião do Prémio Novos Talentos da Literatura FNAC em 2012. Depois disso já passámos por outros prémios, colectâneas e menções honrosas. Andarilhos esforçados das letras, ainda assim, insuficientes para convencer editoras com falta de ousadia e resposta, vamos partilhando a nossa arte por aqui... e por ali... A Maria de Fátima, além de escrever bem, desenha melhor ainda. Os seus esboços são um convite ao texto, crónica esta que nasceu, aqui em baixo, nos olhos do gato. Aproveito para lhe lançar daqui o desafio: E porque não desenvolver um romance, em conjunto, texto e imagem, para participar no próximo prémio literário de vulto? A produção da Maria de Fátima Santos encontram-na aqui

Sempre que a humidade da manhã se torna mais densa deixo-me ficar em casa a coleccionar doenças e alergias, herança do lado tóxico materno, dividida entre a felicidade com aval garantido em likes no Facebook e a vacuidade de uma vida insípida enfiada em setenta metros quadrados hipotecados ao banco, na periferia de Lisboa. 
Comecei a dar a ração aos gatos em pratinhos da vista alegre, dos castanhos, daqueles mais caros. Aquilo não podia ir à máquina e com os dourados a desaparecer e sem ninguém a quem deixar enxoval... Acabei por não casar, por feitio e comodismo, ciosa dos tarecos, livros e discos, não suportaria a ideia de me andarem a mexer nas coisas, ainda que fosse para arrumar. A empregada que faz a limpeza e passa a ferro às quartas-feiras bem me conhece, tem muita paciência, não responde, não resmunga, é quase certo que era impossível encontrar um homem assim. Habituei-me a viver só, sem filhos, a ideia da garotada a espalhar brinquedos, a partir coisas, a sujar o chão, aniversários, doces, reuniões na escola e o diabo a quatro, complicava-me com os nervos, além disso nunca tive talento para filha, dificilmente teria jeito para mãe. Vivo, simplesmente, sem preocupações, ordens ou horários, faço sandes sem deixar cair migalhas no chão, não reclamo da natureza das coisas, deixo-me estar quieta, com um bom livro e um copo de vinho, descanso, enquanto o universo faz das suas.