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quarta-feira, 20 de novembro de 2019

O NARRADOR NUM DOURADO DOMINGO DE INVERNO





O meu conto na edição de Novembro da Revista Athena


A vida transformara-se numa obsessão entre paixões e dor a correr no sangue, rio de cicatrizes com a felicidade a desvanecer-se de noite, no lento ronronar do frigorífico estafado pelos vinte anos de uso permanente, a lâmpada interior a tremelicar por mau contacto, a que era preciso dar umas cacetadas, com bolor entranhado nos cantos e meia cebola cortada, colocada no compartimento dos ovos para absorver os maus odores. Tirava uma ou duas fatias de presunto da embalagem de plástico e comia como um bruto, um metro e oitenta de vontade, um monólito que gostaria de criar um narrador para a sua vida. Sempre achara piada aos narradores que sabiam tudo o que ia dentro da cabeça das personagens desamparadas numa espécie de redenção, das alegrias à infelicidade com hipocrisia e compaixão à mistura, alguém que falasse por si, desenvolvesse os episódios e as cenas e lhe desse alguma unidade interna.
Os dias, embora se sucedessem, não eram todos iguais, tinham feitios, eram de humores. Uma manhã de segunda, em Agosto, não era o mesmo que uma segunda de manhã no Natal. Imaginava, por isso, quando fosse mais velho, fazer finca-pé nos dias e estendê-los, uma vez que entendia que a humanidade não era mais que tempo e linguagem, com alguma memória à mistura e depois morria-se e deixava-se cá a merda toda para limpar, sem ninguém encarregue pela mudança, com a culpa a morrer solteira, não necessariamente virgem.
Em tempos, mantivera uma relação já com muitas dúvidas e tentativas, um ensaio de laboratório, que não resistiu ao tempo por parte dela e a uma universitária de piercing no umbigo por parte dele, que, por sua vez, também não resistira à sua falta de cultura e ao facto de ela não saber fazer molho béchamel, condenada à partida, a uns metros de escrita e vontades do narrador, quando num dourado domingo de outono, enquanto na cidade as pessoas viviam, sem história, no Centro Comercial, ele despejou um par de boxers, o computador portátil e uns livros para dentro de uma caixa de cartão que enfiou dentro do carro e se fez à estrada, para onde o tempo fosse manso e pudesse começar tudo de novo. Morreu, pouco tempo depois, numa curva feita a direito, com um sorriso que ninguém notou. Só comentaram que havia pouca gente no funeral.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

ATHENA



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"Athena existe sem subsídios e é totalmente independente. As velas brilham e o ar está puro."

A minha crónica na Revista Athena:



A REVOLUÇÃO – por Luís Bento

Ao certo não sabia qual fora a deixa para entrar em cena. Se o sorriso precário marcado a amarelo torrado, difuso e cinza do tabaco, se a singeleza da herança genética.
O pai exasperara-se com a progressão linear, sempre às arrecuas, para uma existência chã e sem brilho, e demandara por Lisboa para emendar a vida acabando por gretar as mãos nos andaimes. A mãe a servir em casa de uns senhores, embevecida com as histórias que ouvia em serões de tertúlia sobre os feitos e bravatas de Gonçalo Mendes da Maia –  O Lidador – Achara-lhe graça, juntara os trapos e baptizara o rebento com o nome de Gonçalo, a desaguar num castrador Gongas longe dos desígnios de sucesso e grandeza, sem direito ou recurso a contestação, com Deus a brincar com a sua inocência e o destino a passar rasteiras.
Para além da singeleza da herança genética, fintara letras e algarismos na escola, tirando a ferros, distinta formação em sessões contínuas de matraquilhos. Dali até à idade legal passara menos de um fósforo e aí arranjara trabalho na fábrica de cablagens, acabando por perdê-lo na idade madura e derretera, no imediato, todas as esperanças. Vivia na ignorância, a manifestar-se pelo escárnio e pela agressividade a cujo binómio complacente juntara o ócio e um grão na asa ocasional.
Farto de ruminar apetites e vontades ao ritmo afiado do infortúnio, com duas prestações da casa em mora e o gás por pagar, mais uma série de minudências dessas com paradeiro incerto, decidira-se pela revolução numa noite de borga, escudando-se para isso, no sólido argumento de duas grades de “mines” com o qual convencera dois vizinhos, convictos benfiquistas, sempre prontos para a pancada. Fiat Uno de mil novecentos e noventa e quatro, uma granada de recordação da Guiné, uma faca de mato de ir às lapas nos pontões da Cova do Vapor e a “flóber” que o padrinho lhe oferecera à entrada da adolescência. De olho nos preparativos do exército, a mulher assomara à janela do primeiro andar, ainda a limpar um pratinho da extinta cerâmica de Sacavém com o desenho de um cavaleiro empinado, brandindo uma espada, que o tio coxo encontrara numa obra em que mandou umas paredes abaixo, movida pela curiosidade daquela saída extemporânea ficando a saber que  eles iam a Lisboa fazer uma revolução que já era tempo… Encolheu os ombros entre o enfado e a saturação e lembrou-lhe que, de caminho, passasse pela Damaia lá por casa do sogro e pedisse vinte “éros” para que não lhe cortassem o gás no dia seguinte.
De vez em quando, apesar do esforço, não se furtava à visita de médico que o passe social lhe permitia. Lá ia ele, com o saquinho da Zara com o tupperware dos restos do almoço, suportar, no olhar, o peso da reprovação pelo plasma, o telemóvel, o aparelho dos dentes do miúdo, mais o gajo do banco a ligar por causa do buraco na conta,  cratera sem fundo, à sombra de juros, mora e comissões que lhe reduzira o orçamento à condição de destroço. Achava que chegara a hora de contrariar o destino, os anos de ócio e imprevidência.
O carro transpirava fadiga dos metais na descida da rampa dos cabos de Ávila, num esforço digno de registo no manual de mecânica, rangendo fissuras e desequilíbrios quase a chegar aos oitenta com o vento pelas costas. O plano fora delineado pelo caminho abrindo garrafas a eito, sem dó nem piedade: tomar de assalto a RTP anunciando aos microfones a revolução e tomada de reféns se fosse preciso.
Roncavam, a sono solto à entrada dos emissores quando, ao amanhecer, sentiram umas pancadas secas e vigorosas no vidro do condutor e um olhar farejador e inquisitorial ornamentado com uma farda da Securitas a demandar sobre o que se passava ali.
A manivela a baixar o vidro que só desceu pela metade e o Gongas, ainda estremunhado, a esticar o pescocinho fino e esguio e a inclinar, com sacrifício, a cabeça pondo a testa de fora e, de olhos semi-cerrados, a articular aos bochechos que vinham fazer uma revolução…
Pois vão lá revolucionar para outro lado!! Andor que isto aqui não é a Santa Casa!!
O Gongas olhou para os companheiros esbugalhados, as grades de mines vazias e a vontade aflitiva de mudar a água às azeitonas e aceitou, e agradeceu, com um aceno reverencial, o empurrãozinho para ajudar o Fiat a pegar decidindo, naquele momento, abortar o golpe de estado. Na descida do Monsanto deu uma olhadela de soslaio ao ponteiro da gasolina a cavalgar a reserva e viu que ainda ia muito a tempo de meter para a IC19…
O sol já despontava e o trânsito começava a engrossar. Se se despachasse, ainda o apanhava, era só suportar o tal olhar, um saltinho à Damaia e… sacar vinte euros ao velho para não lhe cortarem o gás…