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A crónica desta semana na Revista Caliban
As 
horas morrem com a chegada do frio e o tédio não é bom conselheiro para 
as exigências do dia a dia e ele chegara a um ponto em que já não tinha 
paciência para o azedume dela, para a sua insatisfação e necessidade de 
higiene doentia, com a casa permanentemente virada do avesso, as janelas
 fora dos caixilhos para passar a pano, detergente e jornal, (esse 
utensílio mágico que não chegava a ler mas que, por força das tintas, as
 deixava a reluzir como nos anúncios da televisão), móveis, quadros, 
cobertores, loiças, e a prenda para o enxoval que a tia Clotilde 
ofereceu quando anunciou no Sabugal que ia viver com um professor de 
educação física em Alfragide, bem perto de Lisboa.
Não,
 não dá para ir a pé, mas tem transportes à porta e é um sítio 
sossegado, uma casa muito boa, o juro é baixo e tem uma vista que ainda 
se vê uma farripa de Tejo mesmo à saída da barra e em noites de nevoeiro
 ouvem-se, ainda que sumidas, as sirenes dos cruzeiros parados no 
estuário.
A
 tia Clotilde tinha emigrado, muito nova, para França e por lá juntara o
 bócio, palpitações, dinheiro e alguns hábitos da cultura e requinte 
Kisch. Construiu uma casarão com telha preta, varandas com cercado em 
madeira tratada com verniz sintético, importado, que cá não havia destas
 coisas, dois leões sentados no pórtico de entrada e no hall, bem no 
centro, todo em mármore de Carrara que um italiano, colega do marido lhe
 tinha dito que era do melhor e ficara ainda mais caro pelo transporte, 
uma fonte com anjinho, com arco e flecha, a fazer beicinho, de onde saía
 um tímido repuxo de água, só meio despido, que ela era mulher de 
pudores e recebia muitos amigos, tudo iluminado com holofotes de cor 
verde e roxa, antes das escadarias em caracol que se abriam, amplas, à 
direita e à esquerda para o primeiro andar com soalho de madeira, 
reposteiros, castiçais e estatuetas, tudo em bom. A tia vinha a 
Portugal, apenas duas vezes por ano e assim, encarregara a irmã e a 
sobrinha das limpezas e do arejamento da casa que estas coisas se não se
 lhes dá uso, estragam-se e enchem-se de bichos, que ela já lá tinha 
apanhado aranhas do tamanho do polegar, pagava à irmã e dava uma 
gratificação à pequena para ajudar nos estudos, talvez daí adviesse a 
exagerada necessidade de limpeza de Sofia para extirpar a raiva, agora 
que já tinha um bom emprego no banco que a ajudava a esquecer a afronta e
 o complexo, certo é que também não tinha paciência para as birras dele,
 para os treinos dele, para as discussões sobre o dinheiro e as compras 
ou para a sua frustração em geral. O ideal era irem a um psicólogo, não 
fosse a falta de bago. Ele reclamava por tudo e por nada, mas matar não 
matava ninguém, nem se matava! Achava idiota mandarem-se para a frente 
de comboios e de pontes, acabavam vivos, e quase sempre, estropiados. O 
seu presente era feito de engulhos, pecados e má memória. Em tempos, 
enrolara-se com uma colega no trabalho. Custava-lhe cruzar-se com ela 
nos corredores da escola, confrontar-se com a culpa, merecida, pesada, 
que até lhe cortava a respiração, imaginar que partira pratos e 
travessas, rasgara livros e trapos e depressa arranjara outro, também 
casado, mas que esse sim, se descasara para ficar com ela, depois de um 
sofrimento atroz, digno de novela, com choro convulsivo à mistura. 
Achara que conseguiria desmantelar uma relação de conforto e rotina, ela
 acreditara por ver outros casamentos desmanchados, mas o rato roeu a corda. Tipo
 banal, opaco, corpo musculado, marrão que vibrava com boas referências,
 um pouco boçal, por vezes, a dizer anormalidades com segurança. O 
remorso, afinal, provocara mais estragos do que pensava. A seguir ao 
abismo, erguera-se o vazio, o regozijo do destino com a desgraça alheia,
 lugar-comum de uma existência sem brilho nem criatividade, arrastando 
os dias numa existência penosa, perdida entre filmes, madrugada fora, a 
empanturrar-se com pipocas e batatas fritas, de pijama, já curto porque 
ela se tinha enganado no programa da máquina, com os pelos do umbigo a 
verem-se no intervalo de pele que sobrava entre o casaco e as calças. E a
 vida seguia o seu curso, acordando, a custo, daí a umas horas para ir 
ensinar adolescentes sem tino, no ginásio da escola colada ao guetto, a fazer flic flacks à retaguarda, o corpo moído, torto, de se ter deixado adormecer no sofá da sala e a boca seca de ressonar forte…