Mostrar mensagens com a etiqueta Pórtico. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Pórtico. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

AS HORAS MORREM



Fonte_shame_2012

A crónica desta semana na Revista Caliban

As horas morrem com a chegada do frio e o tédio não é bom conselheiro para as exigências do dia a dia e ele chegara a um ponto em que já não tinha paciência para o azedume dela, para a sua insatisfação e necessidade de higiene doentia, com a casa permanentemente virada do avesso, as janelas fora dos caixilhos para passar a pano, detergente e jornal, (esse utensílio mágico que não chegava a ler mas que, por força das tintas, as deixava a reluzir como nos anúncios da televisão), móveis, quadros, cobertores, loiças, e a prenda para o enxoval que a tia Clotilde ofereceu quando anunciou no Sabugal que ia viver com um professor de educação física em Alfragide, bem perto de Lisboa.
Não, não dá para ir a pé, mas tem transportes à porta e é um sítio sossegado, uma casa muito boa, o juro é baixo e tem uma vista que ainda se vê uma farripa de Tejo mesmo à saída da barra e em noites de nevoeiro ouvem-se, ainda que sumidas, as sirenes dos cruzeiros parados no estuário.
A tia Clotilde tinha emigrado, muito nova, para França e por lá juntara o bócio, palpitações, dinheiro e alguns hábitos da cultura e requinte Kisch. Construiu uma casarão com telha preta, varandas com cercado em madeira tratada com verniz sintético, importado, que cá não havia destas coisas, dois leões sentados no pórtico de entrada e no hall, bem no centro, todo em mármore de Carrara que um italiano, colega do marido lhe tinha dito que era do melhor e ficara ainda mais caro pelo transporte, uma fonte com anjinho, com arco e flecha, a fazer beicinho, de onde saía um tímido repuxo de água, só meio despido, que ela era mulher de pudores e recebia muitos amigos, tudo iluminado com holofotes de cor verde e roxa, antes das escadarias em caracol que se abriam, amplas, à direita e à esquerda para o primeiro andar com soalho de madeira, reposteiros, castiçais e estatuetas, tudo em bom. A tia vinha a Portugal, apenas duas vezes por ano e assim, encarregara a irmã e a sobrinha das limpezas e do arejamento da casa que estas coisas se não se lhes dá uso, estragam-se e enchem-se de bichos, que ela já lá tinha apanhado aranhas do tamanho do polegar, pagava à irmã e dava uma gratificação à pequena para ajudar nos estudos, talvez daí adviesse a exagerada necessidade de limpeza de Sofia para extirpar a raiva, agora que já tinha um bom emprego no banco que a ajudava a esquecer a afronta e o complexo, certo é que também não tinha paciência para as birras dele, para os treinos dele, para as discussões sobre o dinheiro e as compras ou para a sua frustração em geral. O ideal era irem a um psicólogo, não fosse a falta de bago. Ele reclamava por tudo e por nada, mas matar não matava ninguém, nem se matava! Achava idiota mandarem-se para a frente de comboios e de pontes, acabavam vivos, e quase sempre, estropiados. O seu presente era feito de engulhos, pecados e má memória. Em tempos, enrolara-se com uma colega no trabalho. Custava-lhe cruzar-se com ela nos corredores da escola, confrontar-se com a culpa, merecida, pesada, que até lhe cortava a respiração, imaginar que partira pratos e travessas, rasgara livros e trapos e depressa arranjara outro, também casado, mas que esse sim, se descasara para ficar com ela, depois de um sofrimento atroz, digno de novela, com choro convulsivo à mistura. Achara que conseguiria desmantelar uma relação de conforto e rotina, ela acreditara por ver outros casamentos desmanchados, mas o rato roeu a corda. Tipo banal, opaco, corpo musculado, marrão que vibrava com boas referências, um pouco boçal, por vezes, a dizer anormalidades com segurança. O remorso, afinal, provocara mais estragos do que pensava. A seguir ao abismo, erguera-se o vazio, o regozijo do destino com a desgraça alheia, lugar-comum de uma existência sem brilho nem criatividade, arrastando os dias numa existência penosa, perdida entre filmes, madrugada fora, a empanturrar-se com pipocas e batatas fritas, de pijama, já curto porque ela se tinha enganado no programa da máquina, com os pelos do umbigo a verem-se no intervalo de pele que sobrava entre o casaco e as calças. E a vida seguia o seu curso, acordando, a custo, daí a umas horas para ir ensinar adolescentes sem tino, no ginásio da escola colada ao guetto, a fazer flic flacks à retaguarda, o corpo moído, torto, de se ter deixado adormecer no sofá da sala e a boca seca de ressonar forte…