Carlos Ademar, nascido em Vinhais em 1960, desenvolveu a sua actividade profissional no âmbito da investigação criminal, tendo a escrita sido companhia permanente desde muito cedo. A veia literária manifestou-se sob a forma de livro em 2005 com o título Crime na rua direita, seguindo-se O homem da carbonária, entre outros. Primavera adiada, o seu último romance, é uma viagem à memória, à Primavera Marcelista e ao final dos anos sessenta dominados pelo medo e pelo desejo reprimido de liberdade. Tive o privilégio de conhecê-lo num curso de escrita criativa. Aliada a uma excelente colocação de voz, a clareza das ideias e a simpatia distribuida a rodos deixou a plateia rendida e àvida de questões como se de uma aula se tratasse. Algumas tive ocasião de lhas colocar na altura, as outras espraiam-se aqui, hoje, numa entrevista generosamente concedida a este espaço.
1 – Conhecendo o seu percurso profissional, a questão é incontornável: o facto de muitos profissionais da polícia se dedicarem à escrita é uma necessidade? Uma catarse? Ou, simplesmente, porque há matéria em bruto para ser trabalhada?
Nada sei sobre as motivações dos outros colegas que publicam, quanto a mim, das hipóteses que deu, excluindo a catarse, as restantes têm pleno cabimento. Na verdade, o que me impele à ficção é, desde logo, o gosto pela construção de histórias e passá-las à escrita, procurando, o mais possível, que o formato seja agradável a quem vai ler. Depois, é como diz, vivemos profissionalmente tantos episódios humanos incríveis, convivemos com personagens que ultrapassam em muito tudo quanto o mais fantasioso ficcionista pode aspirar alcançar, que considero um desperdício deixá-los esfumar-se num qualquer apeadeiro do tempo para todo o sempre. Com a consciência de que fico aquém do que desejava, ao escrever procuro deixar um testemunho deste tempo que me foi oferecido para viver, com as suas grandezas e com as suas misérias, nunca esquecendo a componente emoção, essencial a qualquer forma de criação.
2- Começou com o romance policial e enveredou pelo romance histórico. É uma viragem definitiva? Um abandono do policial?
Definitivamente, não. Só se pode escrever sobre aquilo que de alguma forma se domina. Tenho a veleidade de pensar que conheço a investigação criminal suficientemente para dela tirar partido em termos ficcionais. Gosto de História o suficiente para conhecer ou estudar os temas que vou abordando nos meus livros. Gosto de política o suficiente para me interessar e ter opinião sobre o que me rodeia e que interfere com o colectivo e, dentro da minha leitura, conseguir perspectivar o que pode vir a passar-se tendo em conta as premissas que valorizo. Estes são os três grandes temas que têm servido de tronco essencial a todos os meus livros. E não me parece que venha a ter grandes dificuldades em duplicar ou triplicar o número de livros que tenho, usando esta tríplice, dando mais ênfase a um ou a outro tema numa ou noutra obra.
3 – Entre os dois registos, policial e histórico, sente que há maior rigor e preocupação estética no romance histórico?
Não! De forma alguma. Em cada livro, tenha ele maior ou menor peso de uma ou de outra temática, as preocupações estéticas estão sempre em primeiro lugar ou, se quiser, no mesmo patamar que a trama e a envolvente emocional. Nenhum livro sai da minha mão para a editora sem que eu esteja convencido de que melhorá-lo mais é impossível naquele momento, isto independentemente da temática que aborda.
4 – Tendo em conta a evolução tecnológica e os novos suportes digitais da escrita que caminho antevê para a literatura?
A literatura em si não se ressentirá desde que sejam encontradas as fórmulas certas para manter o mercado: produção, distribuição, compensação – assuma esta a forma que assumir. Agora, tenho em conta a rapidez com que a tecnologia tem evoluído, estou convencido de que o formato tradicional do livro está posto em causa. Não sei, talvez ninguém saiba, qual o tempo necessário para levar ao seu desaparecimento, mas calculo que não seja muito tendo em conta os últimos desenvolvimentos tecnológicos e o enorme desequilíbrio do preço de produção entre o livro em papel e o e-book. Há duas semanas recebi uma carta da editora a pedir autorização para que os meus livros sejam passados a este novo formato a fim de serem comercializados. Ainda me soa estranho ler um livro sem o folhear, tomar o seu peso, sentir a textura do papel, da capa, cheirá-lo, mas é inevitável, sendo apenas uma questão de tempo. Dei autorização, claro.
5- Uma última questão glosando o título do seu último livro e levando em linha de conta a situação do país… A primavera foi, definitivamente, adiada?
O título do meu último livro, Primavera Adiada, ao ser criado tinha um duplo objectivo: remeter para o consulado de Marcelo Caetano, altura histórica em que decorre a trama, e logo, para as expectativas goradas de muitos portugueses pela postura do presidente do Conselho, designadamente no que respeita à não abertura do regime e à guerra colonial que Portugal travava em África; num segundo plano, o título pretendia referir-se à vida amorosa de Marta, a protagonista, que foi adiando a sua primavera até ao desengano final. Penso, contudo, que a pergunta faz todo o sentido se associamos o título do livro ao tempo presente. O 25 de Abril abriu-nos ao mundo. Portugal pôs fim à guerra e resolveu a questão colonial. Mais tarde aderiu à então CEE e, paulatinamente, os portugueses conheceram dias de grande progresso económico, ao ponto de, com toda a propriedade se poder dizer que, em termos médios, nunca os portugueses viveram com tanta qualidade de vida. A verdade é que as expectativas têm de ser sempre positivas; temos o dever de olhar para cima, tentando igualar os que vivem melhor do que nós. Era esse o objectivo, mas nos últimos tempos as contas têm-nos saído furadas. A crise mundial que estalou em 2008 revelou as nossas fragilidades para vivermos numa sociedade tão aberta, competitiva e global como aquela em que estamos inseridos. Conhecemos o povo a que pertencemos, conhecemos os seus defeitos - a inveja, a mesquinhez, o facilitismo -, e as suas virtudes – a crença em causas justas, o voluntarismo e a capacidade de trabalho. Um dos dramas históricos deste país foi sempre o mesmo: falta de elites competentes. As poucas que emergem, e por isso nos governam, têm os defeitos mais condenáveis do povo, sem possuir as suas virtudes. Foi isso que nos puxou sempre para trás ou nos impediu de seguir em frente. Um pecado quase genético do nosso ser colectivo: falta de visão estratégica. Poucas vezes a conseguimos e quando isso sucedeu, nas Descobertas, fomos grandes no mundo, e atingimos uma projecção muito superior àquela que seria a espectável face à nossa dimensão territorial e populacional.
Luís, obrigado pela atenção e felicidades.
Um abraço
Carlos Ademar
Luis Bento
Segunda-feira, 1 de Novembro de 2010
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