Há qualquer coisa na nossa vida que, mal ou bem, é sempre assim ou assado, é sempre motivo para defesa ou ataque, chacota ou desculpa e tudo se resolve, alguém paga a conta, perdoa
a dívida ou fecha a porta e, pouco a pouco, acabamos por voltar sempre ao sítio
das recordações, um novelo de corda, sem fim, afundando-nos lentamente.
quarta-feira, 21 de outubro de 2015
segunda-feira, 12 de outubro de 2015
O SENHOR DAS PALAVRAS
Ron Francis |
Subitamente, na sua mente, fez-se outono,
frio, chuva, trânsito e aquele cinzento carregado de neura que só umas valentes
páginas de Proust ou um fim-de-semana em Paris, ou ambos, ajudariam a suportar.
Olhando para trás quase conseguia contar pelos dedos os dias em que não
sentira náusea ou tédio, nem tivera queixas ou dúvidas, embora achasse, sem
grande dificuldade, que a capacidade de se interrogar era o primeiro e único
modo de resistir à desumanização, indicando o caminho ou fazendo luz sobre
ele, habilidade que, no seu caso, pecava, já, por tardia.
Um dia gostaria de ver a parte de
dentro das palavras por um segundo só que fosse, um fio de água a perder-se do
rio, indiferente, perigoso, pardo, uma entrada num dicionário de estética.
Tentava não enlouquecer, pelo menos de manhã. Reparava no silêncio, que não era
fácil, nas folhas secas que ela trazia no cabelo, nas mãos frias e no seu olhar
de vidro, pesado, a anunciar a noite e umas horas para recordar o seu nome com
sabor a pêssego, conhecer o mar e a sombra sob os plátanos do jardim, paralelo
à ruazinha esguia nas traseiras da sua casa que percorria, todos os dias, à
procura de rimas para esquecer fantasmas e para deixar de ser cínico na
tentativa de ensaiar um novo amor. Nada mudara no trajecto. Anseios de quando
eram livres e que regressavam com as ondas. Queria-a mais do que o
necessário, a pairar um pouco acima do limite e nesse excesso ficava emperrado
na paisagem, onde tudo se tornava improvável à espera que as ondas viessem,
meninas da noite, e ele, sóbrio, a dormir, mais criança do que no princípio. O
caos instalava-se na sua cabeça. Ser livre era desgastante e ele não conseguia
dormir em viagens, ainda que interiores. Alice estava sempre no
outro lado do espelho, enquanto desenhava uma flecha no tampo da
escrivaninha no quarto de hotel barato de beira de estrada perdendo-se na
dialéctica, verniz sintético da matéria, matemática oculta do universo grávido
de ingenuidade. Deitava-se então, com a resignação que sempre lhe sobrava e com
o tempo que sempre lhe fugia e ficava quietinho, até ser outra pessoa.
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