Brooke Didonato |
Quando ela se apercebeu dos primeiros sinais de demência do pai mudou-se para uma casa de pedra antiga, com três quartos em soalho, a última em condições, numa fiada de ruínas numa vila no interior, mais calma, solarenga, uma paisagem de artista, onde ele repetia sem cessar a história da bicicleta, prenda de passagem da quarta classe a que ela respondia de forma mecânica: “já me disseste isso três vezes! Hoje!” Antes tivesse um cancro, que fluía rápido, ao invés do esvaziamento progressivo da consciência e do carácter, de que ela já guardava poucos traços.
Ela achava que por já estar nos cinquenta só poderia ter papel de cônjuge se fosse personagem de romance, mas muito má era a sua história, sendo filha única, solteira por acidente e sem contacto com primos afastados por opção, sem lugar para protagonismo, só o sentido de humor lhe mantinha a estabilidade e as raízes de uma macieira viçosa.
A verdade é que nunca fora talhada para compartilhar uma vida sentimental, achava que o outro iria ocupar muito espaço na cama e na cabeça, mais o barulho e a confusão, as explicações, as arrelias, os odores na casa de banho e depois de toda a tolerância e cedência com o gosto e o interesse particular do outro, uma dia cansavam-se e vinha o eclipse. Não obrigado! Estou bem assim, o espírito enganado numa frase, anátema profundo da dor clandestina, mansamente aceite, enquanto sonhava com orgasmos em ditirambos como nas Dialécticas do Jorge de Sena, até ao dia em que, numa ida a Lisboa se cruzou com um antigo colega de Liceu à saída do metro, atrapalharam-se nas cortesias de educação sobre quem saía primeiro e ela perguntou-lhe para onde ia o túnel da saída norte, e ele, serenamente, respondeu-lhe que ia para onde pudessem construir um futuro juntos.
Ela achou piada e deu-lhe o braço…
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