sábado, 7 de março de 2015

PATÊ DE SALMÃO



Gabriel Isak - Shadow and Shelf


Chegou ao vilarejo já de madrugada. Uma madrugada fria, húmida e a ameaçar chuva. Redundância óbvia dos rigores do inverno. O telefonema fora lacónico: O velho bateu as botas. Vem para cima que se faltares parece mal. Em boa verdade, meter-se ao caminho de noite, perder-se na conversa fiada do taxista para santa Apolónia, desesperar no embalo lento do regional de Castelo Branco e enjoar mais trinta kilómetros, para Cebolais não era o seu ideal de fim de semana. Às cinco da manhã, resfolegava no saco-cama no meio da sala, em casa da prima, para recuperar um par de horas para o funeral. Para trás deixara projectos de trabalho, leituras, meia dúzia de coisas com importância para tratar e as chaves de casa na vizinha, para dar de comer ao gato e aos periquitos, que açambarcavam queixas e protestos de quem não podia mais com o ruído aos domingos de manhã, com as penas, com o pó, com a alpista no parapeito e os cócózinhos que deixavam marcas, pior que pontos de ferrugem, na roupa estendida. O gato era a sua predilecção, resgatado aos contentores do lixo de uma fábrica em ruínas com tiques e trejeitos de cão a quem tinham baptizado de Jardel, Pimpas, Michifu, Renault e Látex vingando, no final, um patusco Baltasar por ter devorado, em tempos, um bolo-rei quase por inteiro. Deitava-se no tapete do hall de entrada quando ele saía para o trabalho e ali permanecia, enrolado, saltando-lhe para o colo quando chegava, aninhando-se, a ronronar com a intensidade do trabalhar do motor do frigorífico. Tinha começado a chover, e ele a enterrar os sapatos na lama enquanto recordava o avô nas palavras do padre, protegido pelo guarda chuva seguro pelas mãos rugosas do Firmino ferreiro, amigo extremo, que sempre o alertara, em vão, para não se deixar embarretar pelos ciganos no negócio dos cavalos, luzidios, tingidos de preto-alazão, a desmaiar no castanho baço da primeira barrela, com falhas no pelo e dentes estragados. Parecia mal falar nisso. Parecia mal não aceitar boleia do tio, parecia mal a filha do Zé da Guarda que fugira com um homem sem ter casado. Parecia mal não dizer adeus, não aceitar as couves, o azeite, o pão de centeio, a aguardente de medronho e o sorriso genuíno daquela gente que achava que o futuro estava no fim do alcatrão para Lisboa. Aceitou a boleia. A chuva tinha recomeçado a cair, miúda, silenciosa e o nevoeiro cerrara-se, traiçoeiro, a fechar em demasia nas leis da física, uma curva apertada e o carro a resvalar na ladeira, a desmanchar-se e a retorcer-se em ferros, pneus e estilhaços. Os periquitos... Era preciso ter cuidado para que não fugissem pela portinhola avariada, presa por um clip à base de plástico. E o gato... A comida do gato... Salmão! Ele gosta de patê de salmão, daquele barato, de lata redonda da mercearia do senhor Eurico...

4 comentários:

  1. E no meio do desalento, fica a imagem do gato com trejeitos de cão.

    Boa noite, Luís, e parabéns pela escrita. :)

    ResponderEliminar
  2. É verdade...salva-se o gato. Grato pelo elogio. Fui espreitar o seu espaço, onde se respira qualidade...Vou ser visita assídua...daquelas que só sai empurrado :-))

    ResponderEliminar
  3. Em volta e à volta de memórias.
    Muito bom. Como sempre.
    Parabéns.

    ResponderEliminar
  4. Obrigado Maria Lessa. Um regresso ao blog que já tardava...

    ResponderEliminar