sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

DECIFRAR AS PALAVRAS

Ahmed, 7 years old, stands before a Free Syrian Army stronghold in Aleppo, smoking a cigarette.
The Huffington Post


“Espero uma espécie de alma gémea do outro lado do texto”

Mário de Carvalho

Olho para trás com vontade de corrigir o passado e percebo que nos habituamos a não ter sido. Se fechar os olhos, por instantes, fico a uma distância segura da memória e do medo num universo que achava infinito e renovável, espécie de física quântica ou de tijolos sobrepostos a emparedar a nossa ingenuidade e pergunto-me se alguma vez estivemos completos ou se passámos a vida a apanhar cacos desde a infância. 
Pego no papel e lápis e procuro, nas palavras, encurtar o abismo que nos separa, nesse cansaço de fim de tarde, sem conseguir explicar porque ficou o coração apertado assim tão de repente e tão difícil de decifrar. Sonho somar rugas, cicatrizes, marcas, lastro que o tempo larga  em dias mansos, perder os meus limites à espera do milagre, do fim da novela, ou da Ressurreição no teu corpo. Estou sempre de partida e sem destino, homem brando a levar a vida em banho-maria, a sentir o corpo ausente, a desejar que o remorso fosse pedra para poder lançá-la e aliviar a carga. Em sonhos, viajo para muitos lugares, para longe e durante muito tempo e fico o mesmo, sem certezas geográficas, nomes ou aritméticas. Assim eram os pássaros. 
Toda a realidade se dissolve numa abstracção de Schiller ou Kant... E depois fico assim, parado a meio do texto, sem ideias ou vontade, à espera que ele se escreva sozinho. Fumo um cigarro e penso que o universo é uma dialéctica entretida a subtrair coisas boas do teu sorriso e a fazer-nos viver com a diferença. O dia não ajuda. Está frio e cinzento, vai chover e não trouxe guarda chuva. Oiço baixinho uma música do Einaudi. Deixa-me assim no rame-rame de uma melancolia doce, politicamente correcta, aceitável, se assim se poderá dizer.  Certo é que continuo sem produzir. 
Olho para a frente e vejo que o céu está cheio de pássaros  e percebo, então, que ganho asas quando escrevo, que  a moral da história está naquele livro que nunca lemos, e que decifrar estas palavras é repeti-las no tempo e no espaço, em que o amor é a nossa única liberdade...

3 comentários:

  1. O amor é a nossa única liberdade...
    Mas livres são também as palavras feitas pássaros que voam longe, sem medos ou fronteiras. Não há gramática ou regra que as trave e obrigue à correção métrica ou sintática. Decifrar o significado é ferir, é cortar o sentido dos múltiplos sentidos que tem. Assim é o amor. Sem explicação ou razão. É liberdade.
    Amei como amo sempre.
    Excelente regresso às palavras.
    A ti.
    A nós.

    ResponderEliminar
  2. Quando as palavras saem da pena do escritor, não mais lhe pertencem. Como um dardo inflamável elas seguem a sua rota até atingir o seu objetivo... Podem ou não tocar o coração das pessoas. Confesso: tenho o meu encantado pela beleza e poesia das tuas letras.Obrigada!

    ResponderEliminar
  3. A perfeição das palavras é contundente, parece falar de alguém que conheço, quem sabe de mim. Adorei. Xero

    ResponderEliminar