quinta-feira, 15 de setembro de 2016

DESENHO



A minha crónica na revista CALIBAN 

https://caliban.pt/

Quadro de Gilberto Gueereiro - pintor artístico catch@live.com.pt

Ainda não aprendi a acreditar em Deus. Vou do céu ao inferno num fósforo, mas penso pela minha cabeça sem cair nessas tretas da Virgem, bonita, de vestes brancas, de coração aberto para nos salvar das chamas, das profundezas do mal e de muitos outros suplícios por via das orações diárias com silícios e urtigas esmagadas nas mãos em concha. Quanto muito, poderia andar à boleia do catecismo soft a imaginar, sem grande dificuldade, feiras de santinhos, relíquias, amuletos, crucifixos, velas de cor e pagelas com hóstias coladas a fazer publicidade à padaria portuguesa. Sou um cínico, apesar disso consigo andar em paz, algumas vezes, sossegado, enquanto a chuva desaba nos plátanos e nos aciprestes da mata que vejo das traseiras da minha casa de fim de semana. Às vezes gostava de me encontrar com o passado, mais ou menos no momento em que, naquela infância despreocupada e crente, as minhas dúvidas deixaram de ser brincadeira e se tornaram coisa muito séria. Normalmente é assim, temo-nos em conta de boas pessoas apesar do azedume, do rancor e da inveja. Sem darmos por isso, acabamos numa angústia, a circular em torno do enfado com que contamos as mesmas histórias, pesadelos e mazelas. Gosto de olhar pela janela e adivinhar as horas. Devem ser quase umas seis da manhã, o rio ainda não perdeu o tom escuro riscado pelo fio de prata da lua cheia. As pessoas começam a formigar nas ruas para o emprego, os telhados a abrigar murmúrios e restos de sono de gerações, a igreja com a sua torre lá no alto, a acumular séculos de fé e pedras e tudo continua sereno e inalterável, como se a vida fosse um percurso linear, um equilíbrio de mudas cumplicidades, a que assistimos, impotentes, antecipando acontecimentos. Era isso o destino, talvez. Lembro-me de pedalar num triciclo azul, ferrugento, com assento de madeira áspero e cheio de falhas e gretas. A vizinha deixava-me ir brincar para o quintal e eu ficava ali ás voltas, às voltas, acreditava que se conseguisse fazer umas mil voltas ia ter ao centro da terra, depois ficava tonto e cansava-me e dizia para mim próprio que amanhã ia conseguir ou continuar, uma vez que as mil voltas não precisavam de ser todas no mesmo dia… E sempre que volto à pureza destas memórias esqueço-me de que a morte existe… A maior parte das vezes faço-me de estúpido e percebo que pode ser muito divertido. É um refúgio como outro qualquer. Toda a gente deveria ter uma oportunidade para ser feliz e, acredito, que a minha ainda esteja para vir, apesar de me distrair com o supérfluo e ficar sem vontade para o que realmente me poderia realizar. Tarde ou cedo, a saudade vem sempre para conversar comigo, tudo o mais é ruído num passado que nunca deixou de ser real e num presente que ainda não percebi bem se é desenho ou ficção.

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