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quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

PREGUIÇA MAGAZINE






Ilustração de João Pedro Coutinho


Este texto já por aqui passou, mas vê-lo na Preguiça Magazine tem outro encanto. Muito grato ao Paulo Kellerman pelo apoio e divulgação e ao excelente trabalho de ilustração do João Pedro Coutinho que apanhou, na íntegra, a essência das palavras, dos pássaros e de tudo...


Paulo Kellerman convida e coordena, nós damos a caneta e o papel, depois é só juntar talento e os contos nascem. De 15 em 15 dias, há ficção na Preguiça Magazine.


RAME-RAME


LUÍS BENTO


“Espero uma espécie de alma gémea do outro lado do texto”
Mário de Carvalho

Olho para trás com vontade de corrigir o passado e percebo que nos habituamos a não ter sido. Se fechar os olhos, por instantes, fico a uma distância segura da memória e do medo num universo que achava infinito e renovável, espécie de física quântica ou de tijolos sobrepostos a emparedar a nossa ingenuidade e pergunto-me se alguma vez estivemos completos ou se passámos a vida a apanhar cacos desde a infância.
Pego no papel e lápis e procuro, nas palavras, encurtar o abismo que nos separa, nesse cansaço de fim de tarde, sem conseguir explicar porque ficou o coração apertado assim tão de repente e tão difícil de decifrar. Sonho somar rugas, cicatrizes, marcas, lastro que o tempo larga em dias mansos, perder os meus limites à espera do milagre, do fim da novela, ou da Ressurreição no teu corpo. Estou sempre de partida e sem destino, homem brando a levar a vida em banho-maria, a sentir o corpo ausente, a desejar que o remorso fosse pedra para poder lançá-la e aliviar a carga. Em sonhos, viajo para muitos lugares, para longe e durante muito tempo e fico o mesmo, sem certezas geográficas, nomes ou aritméticas. Assim eram os pássaros.
Toda a realidade se dissolve numa abstracção de Schiller ou Kant… E depois fico assim, parado a meio do texto, sem ideias ou vontade, à espera que ele se escreva sozinho. Fumo um cigarro e penso que o universo é uma dialéctica entretida a subtrair coisas boas do teu sorriso e a fazer-nos viver com a diferença. O dia não ajuda. Está frio e cinzento, vai chover e não trouxe guarda-chuva. Oiço baixinho uma música do Einaudi. Deixa-me assim no rame-rame de uma melancolia doce, politicamente correcta, aceitável, se assim se poderá dizer. Certo é que continuo sem produzir.
Olho para a frente e vejo que o céu está cheio de pássaros e percebo, então, que ganho asas quando escrevo, que a moral da história está naquele livro que nunca lemos, e que decifrar estas palavras é repeti-las no tempo e no espaço, em que o amor é a nossa única liberdade… E então procuro seguir a vida pelo lado de dentro fazendo as curvas com cuidado. O desejo tem sempre muita pressa e eu gosto de abrandar, de ver pelo avesso, de contar pelos dedos as vezes em que o passado nos marcou a vontade ou a falta dela, a perda, o desleixo. Fui-te remendo, pedaço, cola, nota de rodapé, derivação regressiva do verbo amar… E isso já não me basta. Incomoda-me não ser eterno, não ter certezas, não conhecer Marte, não acabar a nossa história com um substantivo concreto. No movimento entre o barco e o cais, não somos nós que partimos, é o mar que chega. Dispo, então, o meu melhor poema que foste tu a sorrir a meu lado com cheiro de manhã. O silêncio é a nossa deixa para seguir viagem. Do corpo não se guarda nada, apenas a memória que sobra do momento em que o suor foi magia.

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