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quarta-feira, 27 de junho de 2012

ENTREVISTA COM RITA FERRO



Estávamos em 1991, quase, quase… a terminar a faculdade quando veio parar, às  minhas mãos,  uma edição  do Círculo de Leitores de O Vento e a Lua… Tinha um teste de Latim na manhã seguinte, cadeira que trazia em atraso desde o segundo ano. Para bem dos meus pecados não resisti a folheá-lo . Duzentas e cinquenta e três páginas, das quais, li sôfregamente cento e oitenta e quatro. Deitei-me às quatro da manhã, fui fazer o teste às nove e, mal saí da sala, devorei as restantes até ao fim. A partir daí fui sempre acompanhando a sua escrita, rendido, a meio caminho entre o fascínio e a devoção. A sua escrita, solta, mordaz e irreverente não deixa margem de manobra à indiferença. Recentemente encontrei-a no seu blog Acto Falhado onde mantém uma tertúlia permanente sobre o nosso quotidiano. Uma razão a acrescer a tantas outras para não lhe perder o rasto. À pequena biografia retirada da net, resta-nos apenas deixar as perguntas a que Rita Ferro amavelmente acedeu a responder e dizer que, naquela manhã, acabei por conseguir passar a Latim…
Rita Ferro nasceu em Lisboa em 1955.
Estudou Design e Marketing, exercendo funções de direcção e consultoria em diversas empresas, na área da publicidade. Foi professora no IADE e colabora regularmente na imprensa, rádio e televisão.
Iniciou-se na escrita em 1990 com o romance O Nó na Garganta, arriscando um novo tipo de escrita feminina – sensível, intimista e geracional – que, tendo obtido um estrondoso sucesso e revolucionando o mercado literário português, conheceu inúmeros seguidores. Hoje, tendo já transcendido as questões femininas, ou não se esgotando nelas, distingue-se por uma técnica de narração mordaz e cativante, de grande versatilidade, tanto no épico urbano de Os Filhos da Mãe como no realismo fantástico de O Vento na Lua.

Entrevista Luís Bento
Bento-vai-para-dentro
14/2/2010 


1- “(…) movida por uma curiosidade insaciável, Pompeia encetava então um fantástico percurso de nómada, cruzando o seu destino com múltiplas personagens (…) o velho irlandês (…) que procurava saciar com bolos a sua fome de afecto”

Extrapolando, poderemos afirmar com segurança ser esta a função do autor? Encetar um percurso nómada por entre palavras e personagens saciando afectos à medida dos parágrafos?

(risos) A pergunta é difícil, sabe? É como pedir à centopeia para explicar como se move – preocupada, troca os movimentos e cai. Não sei, Luís. Não sei mesmo desmontar o processo. Sei que há dois tipos de escritores: os que fazem esqueleto prévio, desenhando minuciosamente as personagens e a história, e outros, como eu, que se sentam, pousam os dedos no teclado e se limitam a seguir o som da flauta. Mas o termo nómada ajusta-se a mim: sou um ser errático, na vida e nos livros, e aventuro-me sempre por caminhos que não conheço, ou seja, não me afeiçoo a nada no livro, estou sempre disposta a abandonar um caminho e a tomar um atalho para agarrar uma ideia que me chegou à cabeça e me empurrou violentamente noutra direcção, como num ciclone. Por vezes, chego ao fim do livro sem saber como terminá-lo, mas a resposta vem sempre: acordada ou a dormir. Quanto a saciar-me não é exactamente o termo. Vou puxando um cordel que puxa as memórias, as quais, por sua vez, puxam as emoções. Mas é um processo frio, desapiedado, cruel: olho as palavras que escrevo sem o menor derriço. Quase como um aluno com um atraso mental que quer passar de exame e eu estou ali, pronta a chumbá-lo, sem coração. De resto, é como quem toca de ouvido.

2 – Em, “O vento e a lua” a descrição brutal do ambiente de miséria em que Pompeia é gerada contrasta largamente, com a mestria de uma narrativa que nos conduz ora com amargura, ora com doçura e suavidade permitindo-nos levar para uma multiplicidade de escritas, gestos e sons, muito para além das imagens e cânones convencionais. Seguiu alguma das “receitas” sobre a arte da narrativa ou, pelo contrário, pretendeu fazer uma ruptura e seguir um novo caminho na descoberta e exposição do corpus literário?

Não, Luís, lembro-me de ter fixado apenas dois conselhos dos meus: a minha avó poetisa disse-me «a simplicidade resulta» e o meu pai escritor «escreve o livro até ao fim e depois deita fora metade». Não sei se os segui, porque sou rebelde a seguir conselhos, ou melhor, não é rebeldia é não poder ser se não eu. Nem na vida peço conselhos, quase nunca peço conselhos. Aproveito os meus recursos naturais, sigo o instinto. Não sei se é mau se bom, mas é como lhe digo.

3 – “ O vocabulário, grande recurso da cultura, é o inimigo do pensamento. Quanto mais aumenta mais ele se vê embaraçado – embaraçado por móveis pesados e fixos, por corpos mortos – e privado do seu espaço” (Jean Dubuffet) Concorda com esta afirmação? O Excesso verborreico conduz à atrofia do pensamento cabendo ao autor a domesticação das palavras?

Hoje em dia, sim. No livro que escrevo neste momento, e é biográfico, o preciosismo lexical deixou de me preocupar e a despedida fez-se sem lágrimas (risos) E penso que sim, que foi uma evolução. Um pouco como os escritores que têm de saber desenhar um corpo humano para se permitirem a fazer um risco numa tela em branco. Já superei essa prova, sinto isso. Repare, só agora me apercebi desta mudança, evolui-se sem se dar por isso e sem sequer apascentarmos esse sonho, sem sequer ser um sonho – é um estado a que se chega, um novo nível. O vocabulário não me interessa tanto, procuro agora formas mais enxutas de falar para que a narrativa sobressaia mais do que o estilo. Quanto ao excesso, penso que não conduz à atrofia do pensamento, mas distrai o leitor do recado que se quer passar. Tornei-me muito mais económica no estilo, muito mais, e espero que isso obedeça a uma maior maturidade e que essa maturidade se transcreva no livro. A ver vamos, é cedo para falar.

4 – “ Sexo na Desportiva “é uma recolha das suas criações de maior êxito em A Bola e no Correio da Manhã, escritas entre 2005 e 2006, juntamente com alguns inéditos.São textos sobre encontros e desencontros amorosos, onde não escapa o sexo. E o seu leitor? Não escapa a quê?

O meu leitor, o leitor daquele livro, não escapa a rir-se se tiver o mínimo de sentido de humor. São micro-histórias com piada, cada uma sobre um desporto diferente, parte delas ousadas. Não me censurei nos temas, mas tive cuidado em preservar o bom gosto. Escrever sobre sexo estabelece esse desafio e permite esse exercício.

5- Uma questão assassina: Será o famoso bloqueio de escritor o tal… “Grau zero da escrita” ?

Não, e ainda bem que pergunta. O bloqueio sucede tanto aos que estão no grau máximo como no mínimo, indiferenciadamente. A mim, esse tipo de apagão de ideias nunca ocorreu. Mas tenho outro tipo de bloqueio que é igualmente exasperante: a falta de vontade. Nunca ninguém fala disto e acontece muito aos artistas. Há livros que não querem ser escritos, o meu pai vivia a contrariar os dele. Anunciou uma trilogia cujo nome não interessa agora, mas só conseguiu entregar os dois primeiros volumes. Lutou com aquele bloqueio anos e morreu sem conseguir terminá-lo. Às vezes há uma recusa interior muito funda que não se compadece com nada, nem com a necessidade económica nem com as exigências contratuais. Uma musa caprichosa e malcriada que o artista tem de aturar. Os outros chamam-lhe preguiça, mas não é. Funciona como um travão: «poderia escrever, mas não sinto vontade.» É tramado. (risos)


Luis Bento
Domingo, 13 de Fevereiro de 2011

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