segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O SENHOR DAS PALAVRAS

Ron Francis




Subitamente, na sua mente, fez-se outono, frio, chuva, trânsito e aquele cinzento carregado de neura que só umas valentes páginas de Proust ou um fim-de-semana em Paris, ou ambos, ajudariam a suportar. Olhando para trás quase conseguia contar pelos dedos os dias em que não sentira náusea ou tédio, nem tivera queixas ou dúvidas, embora achasse, sem grande dificuldade, que a capacidade de se interrogar era o primeiro e único modo de resistir à desumanização, indicando o caminho ou fazendo luz sobre ele, habilidade que, no seu caso, pecava, já, por tardia.
Um dia gostaria de ver a parte de dentro das palavras por um segundo só que fosse, um fio de água a perder-se do rio, indiferente, perigoso, pardo, uma entrada num dicionário de estética. Tentava não enlouquecer, pelo menos de manhã. Reparava no silêncio, que não era fácil, nas folhas secas que ela trazia no cabelo, nas mãos frias e no seu olhar de vidro, pesado, a anunciar a noite e umas horas para recordar o seu nome com sabor a pêssego, conhecer o mar e a sombra sob os plátanos do jardim, paralelo à ruazinha esguia nas traseiras da sua casa que percorria, todos os dias, à procura de rimas para esquecer fantasmas e para deixar de ser cínico na tentativa de ensaiar um novo amor. Nada mudara no trajecto. Anseios de quando eram livres e que regressavam com as ondas.  Queria-a mais do que o necessário, a pairar um pouco acima do limite e nesse excesso ficava emperrado na paisagem, onde tudo se tornava improvável à espera que as ondas viessem, meninas da noite, e ele, sóbrio, a dormir, mais criança do que no princípio. O caos instalava-se na sua cabeça. Ser livre era desgastante e ele não conseguia dormir em viagens, ainda que interiores. Alice estava sempre no outro lado do espelho, enquanto desenhava uma flecha no tampo da escrivaninha no quarto de hotel barato de beira de estrada perdendo-se na dialéctica, verniz sintético da matéria, matemática oculta do universo grávido de ingenuidade. Deitava-se então, com a resignação que sempre lhe sobrava e com o tempo que sempre lhe fugia e ficava quietinho, até ser outra pessoa.








SÓ MAIS UM ABRAÇO






O tempo passa depressa demais e ficamos com a sensação que devíamos ter conhecido, mais cedo, certas pessoas que se cruzam no nosso caminho. A Maria de Fátima Santos é uma delas. Tive o privilégio de me cruzar com a Maria de Fátima nos blogs e, mais tarde,  na colectânea dos Novos Talentos FNAC2012. Tenho acompanhado a sua produção literária na revista Samizdat e em saraus e encontros de poesia, por isso, foi com grata satisfação que recebi o seu convite e que tenho o maior prazer em divulgar o lançamento do seu romance Só mais um abraço, na Livraria Ler Devagar, no próximo dia 17 de Outbro pelas 18H00.
Um momento muito especial para partilhar "um livro com uma voz muito própria, bem escrito e com uma maravilhosa capacidade de evocar imagens e detalhes, bem como sentimentos" nas palavras de Afonso Cruz.

sábado, 25 de julho de 2015

AFTER









Sou fragmento sem explicação, porto de partida sem ninguém de quem me despedir, vítima do abismo feito de lençóis e da vontade do verão que acabou de chegar. Ir embora é uma improbabilidade matemática na poeira cósmica e infinita de um universo, onde só interessa a linha de crédito a seis meses, sem juros e a náusea que sinto por algo de que já não me lembro. Ontem tinha menos anos que hoje, menos rugas e mais paciência. Saúde? Vai bem obrigado!

Ainda acordo, sem grandes certezas, todas as manhãs. Ainda moro na mesma rua, na mesma casa, no mesmo corpo. Desencontrámo-nos. O tempo corre depressa, eu penso devagar e nesse hiato poético... Anoiteço.

domingo, 7 de junho de 2015

ALLAHU AKBAR



Arábia Saudita. 10 anos de prisão e mil chicotadas para o blogger Raif Badawi detido por "insulto ao Islão" 

 

A hipocrisia abre, no espírito, não a sublime convicção da fé, mas a inquietação do medo e, com isso, abre o caminho à mesquinhez humana disfarçada de religiosidade.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

REVISTA VIA LATINA





 



E foi assim que aconteceu... Ontem, 6 de Maio de 2015, na Casa de Artes Bissaya Barreto, o lançamento do 12º volume da VI série da revista Via Latina, da Secção de Jornalismo da Associação Académica de Coimbra (AAC), sob o tema da Semana Cultural da Universidade de Coimbra: Tempo de Encontro(s).



Um orgulho imenso poder partilhar as minhas palavras numa publicação de grande qualidade e prestígio, num projecto sóbrio, com uma composição gráfica irrepreensível e...


 


em muito boa companhia... António Pinho Vargas, Onésimo Teotónio Almeida, Secretário de Estado Jorge Barreto Xavier, Jao Rasteiro, Paulo Guinote e tantos outros e as palavras sábias e bem humoradas do Professor Doutor Rui Alarcão.

Grato à Rafaela Carvalho e ao Paulo Sérgio Santos.



quinta-feira, 23 de abril de 2015

segunda-feira, 16 de março de 2015

PELO LADO DE DENTRO



Egon Schiele







Procuro seguir a vida pelo lado de dentro fazendo as curvas com cuidado. O desejo tem sempre muita pressa e eu gosto de abrandar, de ver pelo avesso, de contar pelos dedos as vezes que o passado nos marcou a vontade ou a falta dela, a perda, o desleixo. Fui-te remendo, pedaço, cola, nota de rodapé, derivação regressiva do verbo amar... E isso já não me basta. Incomoda-me não ser eterno, não ter certezas, não conhecer Marte, não acabar a nossa história com um substantivo concreto. No movimento entre o barco e o cais, não somos nós que partimos, é o mar que chega. Dispo, então, o meu melhor poema que foste tu a sorrir a meu lado com cheiro de manhã. O silêncio é a nossa deixa para seguir viagem. Do corpo não se guarda nada, apenas a memória que sobra do momento em que o suor foi magia.

sábado, 7 de março de 2015

PATÊ DE SALMÃO



Gabriel Isak - Shadow and Shelf


Chegou ao vilarejo já de madrugada. Uma madrugada fria, húmida e a ameaçar chuva. Redundância óbvia dos rigores do inverno. O telefonema fora lacónico: O velho bateu as botas. Vem para cima que se faltares parece mal. Em boa verdade, meter-se ao caminho de noite, perder-se na conversa fiada do taxista para santa Apolónia, desesperar no embalo lento do regional de Castelo Branco e enjoar mais trinta kilómetros, para Cebolais não era o seu ideal de fim de semana. Às cinco da manhã, resfolegava no saco-cama no meio da sala, em casa da prima, para recuperar um par de horas para o funeral. Para trás deixara projectos de trabalho, leituras, meia dúzia de coisas com importância para tratar e as chaves de casa na vizinha, para dar de comer ao gato e aos periquitos, que açambarcavam queixas e protestos de quem não podia mais com o ruído aos domingos de manhã, com as penas, com o pó, com a alpista no parapeito e os cócózinhos que deixavam marcas, pior que pontos de ferrugem, na roupa estendida. O gato era a sua predilecção, resgatado aos contentores do lixo de uma fábrica em ruínas com tiques e trejeitos de cão a quem tinham baptizado de Jardel, Pimpas, Michifu, Renault e Látex vingando, no final, um patusco Baltasar por ter devorado, em tempos, um bolo-rei quase por inteiro. Deitava-se no tapete do hall de entrada quando ele saía para o trabalho e ali permanecia, enrolado, saltando-lhe para o colo quando chegava, aninhando-se, a ronronar com a intensidade do trabalhar do motor do frigorífico. Tinha começado a chover, e ele a enterrar os sapatos na lama enquanto recordava o avô nas palavras do padre, protegido pelo guarda chuva seguro pelas mãos rugosas do Firmino ferreiro, amigo extremo, que sempre o alertara, em vão, para não se deixar embarretar pelos ciganos no negócio dos cavalos, luzidios, tingidos de preto-alazão, a desmaiar no castanho baço da primeira barrela, com falhas no pelo e dentes estragados. Parecia mal falar nisso. Parecia mal não aceitar boleia do tio, parecia mal a filha do Zé da Guarda que fugira com um homem sem ter casado. Parecia mal não dizer adeus, não aceitar as couves, o azeite, o pão de centeio, a aguardente de medronho e o sorriso genuíno daquela gente que achava que o futuro estava no fim do alcatrão para Lisboa. Aceitou a boleia. A chuva tinha recomeçado a cair, miúda, silenciosa e o nevoeiro cerrara-se, traiçoeiro, a fechar em demasia nas leis da física, uma curva apertada e o carro a resvalar na ladeira, a desmanchar-se e a retorcer-se em ferros, pneus e estilhaços. Os periquitos... Era preciso ter cuidado para que não fugissem pela portinhola avariada, presa por um clip à base de plástico. E o gato... A comida do gato... Salmão! Ele gosta de patê de salmão, daquele barato, de lata redonda da mercearia do senhor Eurico...