terça-feira, 28 de maio de 2013

PENSO, LOGO EXÍLIO

Imagem retirada da net
A tia costumava dizer que ele era assim, meio avariado, desde pequenino, que trazia lá dentro, algum botão escangalhado. E dizia-o com ar blasée enquanto distraía a vista cansada nas montras da Joframa, na rua dos Fanqueiros, pejada de manequins amarelos e mortiços, aqui e ali esfolados e com mossas na tinta. Era o tempo em que o universo era feito de legos, livros e coisas boas e em que todos queriam ser alguma coisa: polícia, bombeiro ou astronauta. Ele não queria ser nada. Imaginava-se apenas uma espécie de Vasco da Gama ou Sandokan a descobrir o remédio para tratar a doença da mãe, o absurdo estéril dos  achaques e maleitas que a faziam sofrer de fraqueza e   vomitar entre a casa de banho e o quarto de janelas fechadas, no escuro, a debitar pedidos e queixumes. Doía a cabeça, os rins, as costas, a barriga. É dos nervos dizia o médico É dor de alma  diziam as vizinhas e ele ficava horas , parado, a olhar para o estuque encardido  onde um fiosinho de humidade deixara marcas desde o interruptor até ao rodapé à procura, ali, de algum sinal da existência de Deus. A tia viera da terra para Lisboa  para dar uma ajudinha, achava que ele não tinha tino, que lho levara algum personagem dos livros que lia em demasia, quase tão mau como apanhar muito sol naquela moleirinha cheia de sonhos, mas ele sabia que  ela era afiambrada à socapa pelo Arnaldo do terceiro andar, chauffeur de carro de praça, Merecedes-Benz 200 D, arraçado de carro de combate , polido, lustroso, porta estandarte do belenenses  com imagem fluorescente da nossa senhora no tabelier.  Era nesses momentos que ele aproveitava para ir à caixinha, por trás do jarrão chinês da dinastia Ming que a mãe comprara quando ainda tinha disposição e sorriso, ao aldrabão do Mota da casa de móveis em segunda mão  que afiançava ser genuíno, que de qualidade e velharias percebia ele e tirar umas moedas para ir à mercearia comprar pastilhas e recordar com a Tininha as férias do verão anterior, em Santo André, com o avô a fazer vinho americano às escondidas porque era proibido desde o tempo do Salazar, a barrar manteiga nos dois lados das bolachas Maria porque era guloso e porque as lambia até derreter por não ter dentes.O amor com interrupções, as brincadeiras, as asneiras, muitas, mais que pedras no caminho de Pessoa. Esse Pessoa a tornar-se calhau imenso, estigma melancólico a atravessar-se com pontualidade arreliadora na alma lusa. As corridas para a aloja com cheiro a gasól, do motor de tirar água do poço, porque ela tinha medo dos javalis, cobras e ratos do campo. Trocavam carícias no meio das sacas de batatas  e a avó a espantá-los  com as mãos   ásperas, para ajudarem apanhar os marmelos que começavam a cair de maduros e faziam estrondo ao esborrachar-se nos torrões duros de terra seca,   a avó a gritar porque se esventravam e ficavam sem serventia. O mesmo som que ouviria mais tarde, quando aquele  alferes miliciano que cumprira tropa no Uíge  e que fora da Securitas e depois entrara para um banco e tinha uma mulher  hospedeira, muito bonita e, por sinal, muito simpáticos e se mandou da varanda descascada de um sétimo andar em Odivelas e ele a ouvir a avó gritar que eles se esventravam e ficavam sem serventia e a perceber que a morte tinha cheiro e que no fim ficava um silêncio absoluto, vereda estreita entre o pensamento e a fé, espécie de exílio onde o corpo resgatava a memória e o amor, que se tornava mais forte não pelo espaço ocupado no coração, mas pelo vazio que ficava quando partia…

domingo, 19 de maio de 2013

CABEÇA




Um sono tardio e incompleto num bocejo quase sorriso que lhe escancarava a porta para o sonho , numa equação infinita onde o tempo era apenas um espaço entre linhas.

BENFAZEJA REVISTA

Café com leite por Nélia Gonçalves


Uma excelente surpresa da revista Benfazeja Comunidade Literária do Brasil...


As Conversas ... um conto publicado na Benfazeja... com uma excelente fotografia da Nelia Gonçalves e um agradecimento especial ao editor Wellington Souza . Um mimo do Brasil com referência ainda ao nosso espaço e uma pequena nota biográfica , mais uma vez em excelentes companhias...





Conto de Luís Bento


- Ela não gosta de peixe espada, nem de cabidela, nem de polvo, nem assim… É esquisita! Tenho que perguntar: O que é que queres? Ela nem olha para mim… 



E a conversa a estender-se, mole e azeda, a destilar fel, culpas e barbaridades entre as duas amigas já entradas na idade, fustigando nora, primos, vizinhos, azares da vida, o Papa, o Obama, e o buraco do ozono numa escala ascendente e secular enraizada na genealogia do D. Afonso Henriques. Na montra do café erguiam-se, alinhados, quatro melões brancos empinados dentro de taças de mousse de chocolate, garrafas de Porto, latas de Guaraná, uma águia do Benfica em loiça, uma fina camada de pó e duas moscas tombadas junto ao caixilho. Encostado ao balcão, um brasileiro de sotaque cerrado do sertão descompondo os moleque do Glorioso, um mecânico a insistir nas qualidades nutritivas das iscas com batatas, um pequeno rádio de antena espetada a apanhar frequências no Éter, debitando casos de polícia, escândalos e musiquinha de elevador.



- Quer mais uma torrada? Coma! Se não, dá-lhe a fraqueza! E cházinho? Quer mais chá? Beba para não empanturrar. – E eu é que sei como vou andando. Um mal-estar. Pior do que quando estive doente. Logo vou comer arroz de grelos - mas pouquinho - com bogas fritas. Vou tomar o medicamento. Como um doce e é assim… ver novela, mas pouco que a luz está cara. Nem o molho posso comer. Vou tomar as carteirinhas de sais meia hora antes de deitar, mas não adianta! Fico enfartada na mesma! 



E a mulher zunia sem interrupção ou obstáculos atropelando na acidez das palavras, ora o governo, ora os lençóis de quinze euros que a nora comprara, tão bons que nem engelham, numa luta desigual entre as mandíbulas e a torrada triturada ruidosamente. A amiga meneava a cabeça, à sua frente, com interesse distraído de beiços afogados no chá a diluir-se na memória do marido, manobrador de máquinas da construção civil que a convidara numa noite aziaga para uma casa de petiscos, caracóis, mines e sandes de torresmos. E ela, que não partilhava de particular simpatia pelos gastrópodes, passara a noite a tricotar uma camisola para o neto, ingrato e mal-educado que nem a quisera provar. O marido a engasgar-se com um osso de cabeça de porco do torresmo mal prensado e ela a tricotar o mundo na tasca, na ambulância, nos corredores do hosp ital a aguardar o resultado do exame que acabara por metamorfosear-se em autópsia.



A outra, em velocidade de cruzeiro, invectivava, ainda, a nora. - Sempre toda arranjada, sempre no cabeleireiro, sempre no cabeleireiro. São ricos! Mas eu já vi, uma vez que fomos ao Braz & Braz, que o cartão não deu…. Está avariado! Tenho que falar com o banco para trocá-lo… Avaria… Avaria tem ela na conta arrombada no banco. Tem memória curta que nunca me pagou!.. A cínica! Não têm noção dos dias que aí vêm. 



Às vezes balançava na dúvida entre a existência de Deus e o seu grau de miopia, pois que se Ele estava em toda a parte por onde andaria que não o via fazer nada por si, conformando-se envergonhadamente com a desgraça alheia, da vizinha de baixo por exemplo, que se separara do marido, um burgesso relapso que punha as meias em cima da mesa de cabeceira, não ajudava em casa, não ia às compras e ainda lhe ia ao porta-moedas, descaradamente instalado no acto de se furtar ao sustento da casa e a viver, airosamente, à sombra dela. E a prima, a prima que Deus tinha, coitada, que fora operada primeiro a um peito, depois a outro e uns meses mais tarde, quando insistia para tomar o remédio e as carteirinhas de sais para ficar melhor ela lhe murmurara, numas sílabas inaudíveis, qualquer coisa sobre uma náusea e um quisto escondido por trás do cólon, sem indícios de plaquetas baixas nem nada, acabando por finar-se a meio de um serão televisivo.



Ao seu lado, um homem novo, ouvinte acidental da conversa, viu as horas, deixou umas moedas para pagar o café e lançou um olhar lá para fora, através da montra por onde, àquela hora, se divisava ainda, sem favor, uma nesga de céu. Levantou-se com a vontade expressa de conquistar Lisboa aos Mouros, com a certeza firme de que a vida era algo mais que um lugar comum a esgueirar-se, de fininho, entre um intervalo da novela e um anúncio do Fairy e que a realidade era, “tão somente”, um olhar sereno a entornar azul sobre as coisas…




LUÍS BENTO
nasceu em Lisboa, em 1964. Licenciou-se em Línguas e Literaturas, foi professor e tornou-se bancário. Alinhavou algumas letras e parágrafos em suplementos literários de jornais durante a década de 80.Gere o blog bento-vai-pra-dentro-bento.blogspot.com,onde publica textos de prosa sobre diversos temas, ligados à crítica de costumes, reflectindo sobre a sociedade portuguesa contemporânea. Participou na Coletânea Balaio de ideias e publicou em edição de autor no Brasil, o livro Lusitânia Online.Continua a alinhavar letras e parágrafos em colaboração dispersa em revistas nomeadamente na versão portuguesa da The Printed Blog e a sair brevemente, na versão original nos Estados Unidos. Finalista e vencedor publicado, em conjunto com mais quatro autores, do Prémio Novos Talentos FNAC da literatura 2012.
facebook | @luisbento1 | Blog

Créditos da imagem: Olhares.com
Café com Leite..., por Nelia Gonçalves

ENTREVISTA COM JOSÉ LEON MACHADO



Recuperando uma  entrevista ao professor e autor José Leon Machado, concedida ao nosso espaço em 2010, que julgava perdida por problemas  técnicos e que mantém uma actualidade preocupante.


O convidado desta semana, que gentilmente acedeu ao nosso pedido é o professor José Leon Machado. Nascido em Braga a vinte e cinco de Novembro de mil novecentos e sessenta e cinco é, actualmente, Professor Auxiliar do Departamento de Letras da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, onde se doutorou em Linguística Portuguesa. Tem colaborado em vários jornais e revistas com crónicas, contos e artigos de crítica literária. A par do seu trabalho de investigação e ensino, tem-se dedicado à escrita literária, especialmente à ficção, onde a influência de autores clássicos greco-latinos e autores anglo-saxónicos, se reflecte na sua escrita simples e concisa. Ganhou vários prémios literários, de que se destacam o Prémio Edmundo Bettencourt 2001 da Câmara Municipal do Funchal com a obra Os Incompatíveis (contos, Campo das Letras, 2002) e o Grande Prémio de Literatura ITF 2002 (actual DST) com a obra Fluviais (contos, Campo das Letras, 2001). Descobri-o recentemente por causa do seu último romance O Cavaleiro da Torre Inclinada, com o subtítulo de "Cenas da Vida Académica", onde, num registo simples, numa estrutura narrativa equilibrada, plena de ironia e com algumas pinceladas de sensualidade, nos revela um ambiente e uma praxis de tradição medieval e inquisitorial que ainda hoje subsiste no mundo académico.
Passemos então à pequena entrevista que o professor José Leon Machado amavelmente concedeu ao nosso espaço:

– Como surgiu o professor Leon Machado no mundo literário?


JLM – Antes do professor, já existia o escritor. Eu comecei a escrever um diário aos doze anos e foi nessa altura que surgiu a minha vocação para esta maroteira que é inventar histórias sobre a miséria alheia.


- O Cavaleiro da Torre Inclinada retrata uma certa forma de investigação e arguição académica "inquisitorial". Apesar de Bolonha, ainda se mantém essa perspectiva?


JLM – As coisas, a nível académico, não mudaram muito. O que mudou é superficial: os cursos de quatro ou cinco anos passaram para três e o financiamento do Estado ao Ensino Superior viu-se reduzido, levando à asfixia financeira das universidades, que não têm dinheiro para comprar livros e para pagar a luz eléctrica. De resto, tudo se mantém, infelizmente.
– A personagem principal enfrenta o enfado e a indiferença da mulher pela investigação e aposta no conhecimento do marido. De certa forma, é o retrato da nossa sociedade?
JLM – Sim, é. As pessoas são cada vez mais superficiais. Um lavrador ou um sapateiro analfabetos de há cinquenta anos atrás eram mais cultos do que o cidadão médio actual. Pelo menos sabiam tudo o que era necessário saber para exercer com mestria a sua profissão: tratar a terra e consertar sapatos. Além de terem uma opinião avalizada da vida e do mundo. Hoje em dia o conhecimento (e falo do conhecimento científico e erudito) é considerada, de um modo geral, uma coisa aborrecida, própria de cientistas malucos e de ratos de biblioteca. As pessoas, todavia, esquecem-se de que, sem o conhecimento e a investigação, não há evolução tecnológica.
– A dado passo, Marco Túlio, a personagem principal, cede à tentação de coleccionar certificados de presença a eito. Não estará o autor a "desconstruir" a essência da investigação académica?

JLM – Uma coisa é a investigação e outra a subida na carreira académica. Para se subir na carreira, é necessário fazer investigação. Mas esta é trabalhosa. Por isso, não falta quem opte por apresentar nos congressos uns textozinhos com uma dúzia de citações colhidas aqui e ali sobre determinado tema e ir fazendo o seu percurso académico dessa maneira. E quem faz isto está realmente a coleccionar certificados.

– No final do romance, dá-se uma ruptura na vida da personagem. Foi o final de um ciclo rotineiro em termos de vida académica? Ou o assentar (finalmente) da sua vida amorosa? Acidente de percurso motivado pelo resultado das provas de agregação?

JLM – Não propriamente. Na vida académica não há ciclos. Há um continuum até à cátedra. Como subir uma escada. O Ferreira merecia um castigo. E a esposa também. Numa boa história, os maus no final são castigados. Haja moralidade! Teremos de esperar para saber o que acontece na segunda parte que estou de momento a escrever.




quinta-feira, 25 de abril de 2013

ABRIL

manuel de seabra / social -democracia, in antologia da poesia visual europeia, ed. futura 1977


- Os portugueses devem aos militares de Abril a sua liberdade...  E aos bancos a casa, o carro, o frigorífico...

FOLHA DE PAPEL

Scriptease Editions
A mãe queria que ele fosse médico. O pai queria que ele fosse gente. A mãe queria que estudasse, o pai queria que cortasse as asas e deixasse de sonhar. E ele tornou-se folha de papel cheia de palavras e deitou-se poema nos braços dela, estendida sobre a areia com cheiro a mar.

sexta-feira, 8 de março de 2013

ANITA


Claro que a saga dos livros da Anita tinha que chegar ao nosso blog... Pela mão do amigo Nuno Pires que tem muito "jeito para os computadores"

PORTAL DA LITERATURA



Magnífica surpresa! Muito honrado pela presença no Portal de Literatura no meio de tantos outros autores que tanto prezo e cultivo. Um texto seleccionado e a sinopse do Lusitânia Online. Uma excelente notícia e o meu agradecimento ao Carlos Porfírio.
Já disponível no Portal da Literatura, as Raízes de Luís Bento.




http://www.portaldaliteratura.com/index.php


Período Literário

Literatura Contemporânea
Séc. XXI

Biografia de Luís Bento

Luís Bento nasceu em Lisboa, em 1964. Licenciou-se em Línguas e Literaturas, foi professor e tornou-se  bancário. Alinhavou algumas letras e parágrafos em suplementos literários de jornais durante a década de 80.Gere o blog bento-vai-pra-dentro-bento.blogspot.com,onde publica textos de prosa sobre diversos temas, ligados à crítica de costumes, reflectindo sobre a sociedade portuguesa contemporânea. Participou na Coletânea Balaio de ideias e publicou em edição de autor no Brasil, o livro Lusitânia Online.Continua a alinhavar letras e parágrafos em colaboração dispersa em revistas nomeadamente na versão portuguesa da The Printed Blog e a sair brevemente, na versão original nos Estados Unidos.  Finalista  e vencedor publicado, em conjunto com mais quatro autores, do Prémio Novos Talentos FNAC da literatura 2012.

Livros escritos por Luís Bento


nosso objectivo passa por nos aproximarmos do todo. O que é o todo? É conseguirmos referenciar neste portal a maior parte das obras portuguesas. Para isso contamos também consigo: nos títulos de autores que estejam em falta, nas indicações que nos possam ser úteis. Basta que nos contacte para o e-mail geral@portaldaliteratura.com Contamos consigo.
Nota: O Portal da Literatura não disponibiliza, para consulta, obras completas.


Todos os Títulos
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Lusitânia Online

Autor Sinopse
Histórias reunidas no contexto  da crítica de costumes à sociedade portuguesa. Crónicas do quotidiano onde a sensibilidade e um certo humor amargo se entrecruzam.


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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A ESPERA



Pascal Campion

Acreditava que nada acontecia  por acaso. Que ver borboletas brancas dava sorte e que fazer o sinal da cruz redimia o pecado e livrava da esmola. Que do céu vinha a chuva e se estacionavam as almas. Que o Proust era uma seca, dava azia e que o amor era uma espera suave, à noite, dentro de uma história sem fim... 

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O PASSADO AO COLO

"Chiado molhado" - Fotografia de Isabel Garcia Pereira

Às vezes trazia o passado ao colo, porto seguro onde se refugiava amiúde, a declinar escolhas e consequências, presa fácil da infância, dos natais a morrer de tédio, sempre passados na terra, a aborrecê-lo sobremaneira por não poder ver o Espaço 1999, das velhas da aldeia, de buço rijo a picar-lhe a cara, à chegada, com os beijinhos e a cantilena pronta e rotineira de que já estava um home!, das moedinhas de vinte e cinco tostões e dos biscoitos rançosos guardados em frascos de Tofina desde a consoada anterior, que insistiam em lhe oferecer, do sacrifício supremo de ter que assistir às missas só atenuado pela perspectiva de se sentar ao lado das raparigas quando o pároco, a ler as escrituras de voz sibilante lhes ordenava que se cumprimentassem na paz de Cristo e ele, finório, a ajeitar os beiços para o ósculo oportunista e elas, com pudor exagerado, a estenderem-lhe a mão com o olhar cabisbaixo, das visitas de estudo da escola, das excursões ao Mosteiro da Batalha, do arco em ogiva, do postalinho com a imagem do túmulo do soldado desconhecido, da florzinha para a mãe e outra para a tia, ainda a viver lá em casa, a tomar-se de amores por um mancebo bem apessoado a cumprir tropa em Moçambique e ela que queimava pestanas à noite e massacrava as falangetas, a tirar a quarta classe de adultos e o curso de dactilografia e estenografia a escrever cartas comerciais em teclado HCESAR, a casar por procuração e apanhar boleia no Infante Dom Henrique para Lourenço Marques, para trabalhar nos escritórios da Lusalite com um patrão que era muito boa pessoa não desfazendo
No verão, trazia-lhe cajus, roupas e lembranças que davam nos aviões da TAP.  E ele guardava com zelo embevecido os tarecos, cromos, lembranças, réstias de sol, aroma de noites quentes, dramas,  gargalhadas,  palavras… um pouco de mim, de ti, do pretérito imperfeito em que éramos nós…detalhes, marcas, cicatrizes, sulcos na pele em forma de memória, com a mágoa a fazer de conta que se ia embora deixando espaço aberto para as coisas doces, como quando  pedia ao vento para não fazer barulho para não acordar os castanheiros que dormiam de pé, tranquilos, nas terras frente ao quarto onde a mãe descansava da dor de cabeça. Torpor de que só despertava quando a menina Isabelinha da contabilidade, ao almoço, falava do seu problema do maxilar com pouca massa óssea para suportar implantes e da colega de secretária, indiferente, passando creme pelas mãos queixando-se do marido que ressonava que parecia um motor de motocicleta a quatro tempos…
A chuva a cair, miudinha, na noite baça e ele a regressar à realidade… ou a esvair-se no sonho, até ao ponto em que a felicidade se tornava no instante em que o corpo dela e a alma dele ficavam do mesmo tamanho percebendo, então, que o amor era uma coincidência no caminho, entre dois,  a dissimular a liberdade ou a falta dela…

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

A HISTÓRIA DA BRUXA MÁ

Renato Guttuso


À noite, para além dos gatos pardos, voava em páginas, a domesticar a torrente de palavras nas margens do silêncio, ocupado a pontuar, de mansinho, frases de figurino e histórias de encantar.
Era uma vez… (assim começavam todas as histórias), um par de estrelas a cintilar, um poema à deriva sem métrica definida, uma mão cheia de gestos, um sorriso e um pintor. Com o brilho das  estrelas deu luz à esperança, com o ritmo do poema deu corda à paixão, com o preciosismo dos gestos construiu um palácio e abriu o sorriso e assim pintava os dias na quadrícula das calendas. Até ao momento em que apareceu a bruxa má. Enquanto Deus andava distraído, o inferno cheio e o mundo ocupado, com um sopro, roubou-lhe a esperança, fechou-lhe o coração, derrubou o palácio,  apagou o sorriso e secou as cores. E assim, o pintor tornou-se banqueiro, a bruxa má amancebou-se com ele, Deus tornou-se passagem bíblica,e o mundo tingiu-se de cinzento. De todo o lado se levantaram vozes de  escritores, críticos e outros literatos, intifada académica, a moer pelo peso da forma, lançando o vitupério pela falta de domínio narrativo, senso  e moral da história agonizante no triunfo obsceno do mal, não percebendo eles que, entre o encanto e a realidade sem anestesias, o mundo era hoje, também ele, uma história mal contada…


FUSTIGA-ME!!



Porreiro pá!  Uma pessoa ausenta-se para comer uma bucha e, no regresso, dá de caras com uma boneca com falta de ar no posto de trabalho...Brincalhões... Vou zurzi-los com um texto! Até lá ficam obrigados a assistir a vinte e quatro horas seguidas do Canal Parlamento...

O ÚLTIMO BLOG E OUTRAS BLOGAGENS



Abrir a caixa do correio é um gesto quotidiano e automático assim como automáticas e quotidianas são as contas para pagar e a publicidade não solicitada. Abrir a caixa do correio e encontrar, recém-chegado do Brasil, o livro do Eduardo P. Lunardeli com uma bela dedicatória não é automático... É um acto de generosidade e de alegria que faz cimentar uma amizade de três anos ainda não concretizada no plano geográfico. É bom ler agora, com outro olhar, os textos e a evolução de um blog que se tornou uma referência.

Obrigado Eduardo e Parabéns pela qualidade do livro e pelo seu cuidado.  

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O VIDEO DA FNAC







Faço minhas as palavras da Maria de Fátima: um gosto imenso e um orgulho ouvir as nossas  palavras nas palavras do grande Valter Hugo Mãe....

Obrigado








quarta-feira, 28 de novembro de 2012

CONVERSAS

Elementi pictorici

O mito do eterno retorno ou, simplesmente, um braço de ferro com as palavras. “A história das velhas”, conversas cruzadas num café em final de tarde, arrastava-se penosamente desde o verão passado por circunstâncias várias. Momentos houve em que o autor, proto-assassino confesso, esteve para matar o texto. Afinal, venceram as palavras… et voilá!

- Ela não gosta de peixe espada, nem de cabidela, nem de polvo, nem assim… É esquisita! Tenho que perguntar: O que é que queres? Ela nem olha para mim…

E a conversa a estender-se, mole e azeda, a destilar fel, culpas e barbaridades entre as duas amigas já entradas na idade, fustigando nora, primos, vizinhos, azares da vida, o Papa, o Obama, e o buraco do ozono  numa escala ascendente  e secular enraizada na genealogia  do D. Afonso Henriques. Na montra do café  erguiam-se, alinhados,  quatro melões brancos empinados dentro de taças de mousse de chocolate, garrafas de Porto, latas de Guaraná, uma águia do Benfica em loiça, uma fina camada de pó e duas moscas tombadas junto ao caixilho.   Encostado ao balcão, um brasileiro de sotaque cerrado do sertão descompondo os  moleque do Glorioso, um mecânico a insistir nas qualidades nutritivas das  iscas com batatas, um pequeno rádio de antena espetada a apanhar frequências no Éter, debitando casos de polícia, escândalos e  musiquinha de elevador.

- Quer mais uma torrada? Coma! Se não, dá-lhe a fraqueza! E cházinho? Quer mais chá? Beba para não empanturrar. – E eu é que sei como vou andando. Um mal-estar. Pior do que quando estive doente. Logo vou comer arroz de grelos - mas pouquinho - com bogas fritas. Vou tomar o medicamento. Como um doce e é assim… ver novela, mas pouco que a luz está cara. Nem o molho posso comer. Vou tomar as carteirinhas de sais meia hora antes de deitar, mas não adianta! Fico enfartada na mesma!

E a mulher zunia sem interrupção ou obstáculos atropelando na acidez das palavras, ora o governo, ora os lençóis de quinze euros que a nora  comprara, tão bons que nem engelham, numa  luta desigual entre as mandíbulas e a torrada triturada ruidosamente. A amiga meneava a  cabeça, à sua frente, com interesse distraído de beiços afogados no chá a diluir-se na memória do marido, manobrador de máquinas da construção civil que a convidara numa noite aziaga para uma casa de petiscos,  caracóis, mines e sandes de torresmos. E ela, que não partilhava de particular simpatia pelos  gastrópodes, passara a noite a tricotar uma camisola para o neto, ingrato e mal-educado que nem a quisera provar. O marido a engasgar-se com um osso de cabeça de porco do torresmo mal prensado e ela a tricotar o mundo na tasca, na ambulância, nos corredores do hospital a aguardar o resultado do exame que acabara por metamorfosear-se em  autópsia.

A outra, em velocidade de cruzeiro, invectivava, ainda, a nora. - Sempre toda arranjada, sempre no cabeleireiro, sempre no cabeleireiro. São ricos! Mas eu já vi, uma vez que fomos ao Braz & Braz, que o cartão não deu…. Está avariado! Tenho que falar com o banco para trocá-lo… Avaria… Avaria tem ela na conta arrombada no banco. Tem memória curta que nunca me pagou!.. A cínica! Não têm noção dos dias que aí vêm.

Às vezes balançava na dúvida entre a existência de Deus e o seu grau de miopia, pois que se Ele estava em toda a parte por onde andaria que não o via fazer nada por si, conformando-se envergonhadamente com a desgraça alheia, da vizinha de baixo por exemplo, que se separara do marido, um burgesso relapso que  punha as meias em cima da mesa de cabeceira, não ajudava em casa, não ia às compras e ainda lhe ia ao porta-moedas, descaradamente instalado no acto de se furtar ao   sustento da casa e a viver, airosamente,  à sombra dela. E a prima, a prima que Deus tinha, coitada, que fora operada primeiro a um peito, depois a outro e uns meses mais tarde, quando insistia para tomar o remédio e as carteirinhas de sais para ficar melhor ela lhe murmurara, numas sílabas inaudíveis, qualquer coisa sobre uma náusea e um quisto escondido por trás do cólon, sem indícios de plaquetas baixas nem nada, acabando por finar-se a meio de um serão televisivo.

Ao seu lado, um homem novo, ouvinte acidental da conversa, viu as horas, deixou umas moedas para pagar o café e lançou um olhar lá para fora, através da montra por onde, àquela hora, se divisava ainda, sem favor, uma nesga de céu. Levantou-se com a vontade expressa de conquistar Lisboa aos Mouros, com a certeza  firme de que a vida era algo mais que um lugar comum a esgueirar-se, de fininho, entre um intervalo da novela e um anúncio do Fairy e que a realidade era, “Tão somente”, um olhar sereno a entornar azul sobre as coisas…

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

EDUARDO P. LUNARDELLI - O ÚLTIMO BLOG E OUTRAS BLOGAGENS



O livro " O ÚLTIMO BLOG e outras blogagens"esta disponível


Finalmente depois seis meses de intensa gestação, o livro esta na praça.
No formato de 14 x 21, com 320 páginas, Prefácio de Jorge Pinheiro, texto de orelha de Luis Bento, caricatura da capa de Roque Sponholz,  começa a ser comercializado. Inicialmente os pedidos poderão ser feitos por e-mail (cimitan@terra.com.br ), ou pelo telefone 5511 30794433 ( falar com Cida ). Oportunamente estará em algumas livrarias na Cidade de São Paulo, e talvez algum site de vendas pela Internet. Estamos trabalhando nesse sentido

Eduardo P. Lunardelli.. Foi há cerca de três anos que o conheci, na chamada época áurea dos blogs, que tropecei no Varal de Ideias. Qualidade gráfica e textual,  assertividade, humor, inovação, intenso fervilhar de  temas e conceitos, sem barreiras geográficas , foram motivo suficiente para me deixar prender na sua rede. Dono e senhor de um dinamismo e energia invejáveis, de uma criatividade e generosidade sem limites, conseguiu colocar  dezenas de leitores em permanente contacto e partilha apesar da barreira do imenso oceano que nos separa.  Depois a blogosfera entrou em decadência. Fruto da efemeridade dos tempos modernos e  de uma terrível característica destes nossos novos tempos: A sociedade tornou-se e tornou-nos descartáveis. Daí que tenha recebido com muita alegria a boa nova  de o Eduardo  Penteado Lunardeli  passar os seus blogs a livro e, ainda mais, o enorme prazer de poder  elaborar estas  singelas linhas. O tempo passa a correr, o mundo está em crise, as más notícias sucedem-se a um ritmo avassalador, mas a palavra impressa perdurará para além da “Nuvem” ou das redes sociais…
                                                   
E eu, feliz e honrado por fazer parte do seu círculo, subscrevo inteiramente e permito-me acrescentar uma frase lida nos seus blogs:  A culpa é do Cabral, que os descobriu....

E ainda bem!!




domingo, 11 de novembro de 2012

OLHAR O PASSADO

Desenho de Lou Camille
 Hoje não se trocam cartas, trocam-se mails que é a mesma coisa: Palavras que vão e vêm, mas sem selo. Neste caso, com a Lou Camille do blog Neurologia do Parasita


"E eu  que só hoje li os teus mails, a debitar figuras de estilo e trocadilhos a esmo na escrita. Afinal, basta simplicidade sem acabamentos ou rodapés, assentar as palavras direitinhas como tijolos...
Não te importas se eu publicar o mail pois não? Exemplos de arte escrita não podem ficar escondidos na caixa de correio... "

(Luís Bento)

"Menino, vê lá... eu não quero escrever nem ser escritora. escrevo para mim e para alguns que gostam de me ler através de palavras escritas em português. não faças de mim o que não sou. (eu gosto de bastidores. gosto de maçã reineta e pêra rocha. eu gosto da palavra como gosto de pincéis. gosto da superfície das telas e da trementina. gosto ainda de Beethoven e de Satie mas também de Mozart e de Cosi Fan Tutte. Eu gosto de abrir e ver o que tem dentro e, por vezes, fechar a seguir. Gosto do amargo e do chá sem açúcar. eu gosto do silêncio e não gosto do gosto dos outros.) interessa-me a humanidade e um copo de vinho. porque a humanidade pode estar dentro de um copo de vinho sem ciência nem artifício."


"e eu..........que nem encantadora, que nem menina, falo uma linguagem de lá longe, do outro tempo que não eu a minha avó e o meu pai menino, os tempos da casa na Graça que não eu a minha mãe garota, as hortas de Benfica que não eu o meu avô e a tribo dele…. Histórias que sempre me contaram ao borralho, nos jantares alongados nas mesas fartas do pão de milho e da chouriça…. o cheiro da couve galega na panela de ferro e o crepitar dos sonhos nas brasas de oliveira. Era um tempo diferente mas bom, eternamente bom. A minha irmã menina, o meu irmão não morto, vivo, os três a fazer teatro atrás do reposteiro no vão da porta onde as paredes eram de granito, frias e húmidas. E todos a bater palmas no final!…. serões de província…. serões de conversas, de histórias que eu ouvia….. e ainda hoje se fazem lá por casa, mesmo sem teatro….. e por vezes com gotas de saudade….. ….. é bom saber como isso nos fez o que somos.
Um dos resultados é não ter televisão em casa. "

(Lou Camille)

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

FNAC


E pronto! Aconteceu! 
O lançamento dos Novos Talentos FNAC Literatura 2012 foi no Chiado às 17h30. Uma sala concorrida num ambiente muito bom e bonito a escapar demasiado rápido pelo final de tarde. O júri a debruçar-se sobre a obra, a dificuldade da escolha e análise e o escritor Valter Hugo Mãe a tecer considerações e a rematar com a leitura de excertos dos vários contos e a pele arrepiada  a fazer borboletas na barriga... Um prazer enorme conhecer os outros autores e ver, finalmente, as "caras " de quem, connosco, partilha textos e ideias na Net. Revimos amigos e colegas, trocámos mails, contactos, sorrisos, abraços e palavras. Muitas palavras... a elevar o prazer da escrita e a consolidar o valor da amizade.

Um cumprimento muito especial ao José Guerra e Paz e à Mafalda Azevedo  da FNAC pelo excelente trabalho organizativo e promocional do evento.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

NOVOS TALENTOS FNAC LITERATURA 2012



E temos livro!


O livro Novos Talentos FNAC Literatura 2012 já está disponível nos espaços FNAC.

Cinco autores, cinco perspectivas da escrita.


A sessão de lançamento do livro terá lugar na FNAC do Chiado, dia 8 de Novembro, pelas 17h30. 

À imagem das edições anteriores este evento contará com a presença do júri Valter Hugo Mãe, Dóris Graça Dias e Carlos da Veiga Ferreira.

Grato a todos quantos participaram nas votações e no resultado final.