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sexta-feira, 10 de agosto de 2012

ENTREVISTA COM ALICE VIEIRA



A entrevista com uma grande senhora das letras que muito nos honra com o seu brilho. Dona de um humor e energia invejáveis, sucinta, prática e concisa. "Amigo respostas curtas, que já não estamos em tempo de discursos".

Alice Vieira nasceu em Lisboa, em 1943. Nos anos 60 deixou-se levar pelo jornalismo – e nunca mais de lá saiu.
A partir de 1979, acumulou com a escrita de livros. Mais de 70, até hoje. Para crianças, para adolescentes, para adultos.
Muitas traduções por esse mundo fora,  alguns prémios.
Mas continua a não saber nada, como não sabia ao princípio.

1 - O mundo, tal como o conhecemos, está em rápida desagregação, crise de valores, falta de solidariedade e com acentuado e excessivo incremento do poder financeiro. De que forma pode a literatura modificar ou alterar este estado de coisas ou qual o seu papel neste nosso novo mundo?

A literatura não muda coisa nenhuma. A literatura pode fazer de nós pessoas melhores – e isso é que é importante.
   
2 - A literatura e os seus suportes estão, também eles, em mudança assistindo à expansão dos suportes digitais em detrimento do velho papel. E o leitor actual? Mudou? Evoluiu? É mais exigente? Continua com sede de aprender ? Ou busca apenas entretenimento?

O mundo mudou, os leitores mudaram, todos nós mudámos. Mas os clássicos – em suporte papel ou digital – continuam a ser as nossa referências. Não sei, nem me importa saber, se o público evoluiu, se é mais exigente, se continua com sede de aprender ou só quer entretenimento (e porquê separar o “aprender” do “entretenimento”???). Sei que eu sou, como sempre fui, muito exigente e, ao mesmo tempo, muito egoísta: escrevo para mim, como eu acho que devo escrever. Se depois as pessoas me leem… ótimo. Mas nunca penso nelas à partida. (Não estou a falar dos livros para crianças muito pequenas, porque isso é outro departamento… Estou a falar de literatura.)

3 - Na sua actividade literária já percorreu todos os tipos de público. Juvenil, adulto, etc. Há muitas diferenças entre esses tipos de público? Qual o grau de exigência ou pontos de contacto?

Penso que já ficou respondido. O grau de exigência é o mesmo.

4 - Passando a sua obra em revista, qual a importância da memória e do quotidiano na sua escrita?

A memória e o quotidiano são o meu alimento. Sempre foram. Como jornalista, acho que nunca poderia ser de outra maneira

5 - Em Bica Escaldada reúne uma série de textos onde se vai impondo uma crónica de costumes da sociedade portuguesa das últimas décadas. À luz dessas histórias e dos tempos que vivemos sente que se perdeu a inocência, o humor, o interesse e preocupação pelo outro  em detrimento de uma certa desilusão?

Essa de “estarmos desiludidos”, coitadinhos de nós, é uma ótima desculpa para não fazermos nada… E é evidente que não podemos cair em generalizações. As  minhas crónicas da “Bica Escaldada” foram publicadas nos anos 80. Não há telemóveis, nem iPads, nem outras maravilhas fatais da nossa idade. Mas continuam a ser lidas hoje. Como  acontece, por exemplo, com o “Chocolate à Chuva”, um romance que escrevi há 30 anos, e que continua, ainda hoje, a ser lido nas escolas…
O mal de muitos autores é quererem escrever para a posteridade... A gente sabe lá o que vai ser a posteridade… Escrever para nós, no nosso tempo, com grande rigor e com grande exigência é a única solução.



domingo, 15 de julho de 2012

SILÊNCIO


Alfredo Araújo Santoyo

Três pequenas histórias, três perspectivas sobre o silêncio com leituras nas entrelinhas. A morte, o quotidiano e o amor.

O SILÊNCIO - I


Num frémito, a brisa acenara-lhe à janela onde passava páginas em branco, noites a fio, a desenrolar o silêncio das palavras de olho nas estrelas. Sibilina, a morte segredara-lhe que cair nos seus braços era viver como estrela, brilhando, as boas, mais que as más. Não havendo pecados a expiar, nem grandes nem pequenos, pegou na alma, subiu ao terraço, galgou o parapeito e deixou-se levar, de um sopro, no brilho do silêncio…


SILÊNCIO! - II


Amarelecida de inutilidade, ciosa do traço tosco da enfermeira de dedinho em riste sobre a boca, a placa sobrevivia, a custo, num equilíbrio precário entre a força de gravidade e a cola ressequida, escorregando numa lentidão imperceptível pela parede abaixo, ante a algazarra anárquica instalada na sala de espera do centro de saúde. Novos, velhos e assim-assim, exibiam com orgulho bacoco e ruidoso, chagas, fístulas, feridas infectadas e outras enfermidades constantes dos alfarrábios clínicos, como condecorações de guerra de uma vida esgotada, com esforço, numa olimpíada masoquista repartida em retalhos e privações entre a Sueca no jardim e as filas intermináveis, em pé, sobre joanetes inflamados, à cata do primeiro prémio da lotaria de consultas. De um lado, uma conformada brigada do reumático onde soldados sem brazão no apelido ou homem de peso à beira da pia baptismal remexiam, com irritante insistência, na sacaria repleta de embalagens vazias de analgésicos e ampolas esmolando assinatura e vinheta do sotôr na receita. Do outro, uma exaurida plebe de classe média empregada por conta de outrém, irrequieta, prisioneira do crochet nervoso e miudinho, da fofoca de novela e do quotidianozinho semeado de injustiças, esgravatando no divórcio frequente das vedetas ou na maldade da besta da professora da Nini do quinto esquerdo da travessa que a tomara de ponta, embirrara com ela e insistia em dar-lhe más notas preparando-se para lhe oferecer uma raposa mais que certa. Alguns miúdos espojavam-se no chão numa descontraída gritaria para desjejuar do fastio das horas de cárcere involuntário na sala. O Sotôr, de nervos em franja, arrepanhava a melena por entre relatórios e credenciais, mal dormido pelo peso do enfeite com que o presenteara a namorada que, apesar de vestir mal de cara se evidenciava em intermináveis jogos de cintura que, afinal andava distribuindo de forma generosa, por seara alheia. Mais pelo peso do ruído do que pela força do ciúme, num assomo de ira, abriu a porta do gabinete de rompante e, rubicundo, vomitou-se em berros e imprecações exigindo silêncio:

- Se torno a ouvir uma mosca, um verme ou uma lesma rastejando no mosaico vou-me embora, não dou mais consultas hoje e não há receitas pra ninguém!
Enfiou-se para dentro fechando a porta com enfadado estrondo.
A placa não resistiu ao apelo das leis da física e estatelou-se no chão desagregando-se , com o impacto, em parcelas de composição molecular.
E então fez-se silêncio…


O SILÊNCIO - III


No princípio, apenas o verbo, lento, sorrateiro, conjugado no verbo amar insinuando-se aos pedaços. Logo a seguir a paixão, tomando forma escrita na espera transformada em desejo dos corpos nus, em pé, contra a parede, consumindo-se em silêncio…