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quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

ATHENA



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"Athena existe sem subsídios e é totalmente independente. As velas brilham e o ar está puro."

A minha crónica na Revista Athena:



A REVOLUÇÃO – por Luís Bento

Ao certo não sabia qual fora a deixa para entrar em cena. Se o sorriso precário marcado a amarelo torrado, difuso e cinza do tabaco, se a singeleza da herança genética.
O pai exasperara-se com a progressão linear, sempre às arrecuas, para uma existência chã e sem brilho, e demandara por Lisboa para emendar a vida acabando por gretar as mãos nos andaimes. A mãe a servir em casa de uns senhores, embevecida com as histórias que ouvia em serões de tertúlia sobre os feitos e bravatas de Gonçalo Mendes da Maia –  O Lidador – Achara-lhe graça, juntara os trapos e baptizara o rebento com o nome de Gonçalo, a desaguar num castrador Gongas longe dos desígnios de sucesso e grandeza, sem direito ou recurso a contestação, com Deus a brincar com a sua inocência e o destino a passar rasteiras.
Para além da singeleza da herança genética, fintara letras e algarismos na escola, tirando a ferros, distinta formação em sessões contínuas de matraquilhos. Dali até à idade legal passara menos de um fósforo e aí arranjara trabalho na fábrica de cablagens, acabando por perdê-lo na idade madura e derretera, no imediato, todas as esperanças. Vivia na ignorância, a manifestar-se pelo escárnio e pela agressividade a cujo binómio complacente juntara o ócio e um grão na asa ocasional.
Farto de ruminar apetites e vontades ao ritmo afiado do infortúnio, com duas prestações da casa em mora e o gás por pagar, mais uma série de minudências dessas com paradeiro incerto, decidira-se pela revolução numa noite de borga, escudando-se para isso, no sólido argumento de duas grades de “mines” com o qual convencera dois vizinhos, convictos benfiquistas, sempre prontos para a pancada. Fiat Uno de mil novecentos e noventa e quatro, uma granada de recordação da Guiné, uma faca de mato de ir às lapas nos pontões da Cova do Vapor e a “flóber” que o padrinho lhe oferecera à entrada da adolescência. De olho nos preparativos do exército, a mulher assomara à janela do primeiro andar, ainda a limpar um pratinho da extinta cerâmica de Sacavém com o desenho de um cavaleiro empinado, brandindo uma espada, que o tio coxo encontrara numa obra em que mandou umas paredes abaixo, movida pela curiosidade daquela saída extemporânea ficando a saber que  eles iam a Lisboa fazer uma revolução que já era tempo… Encolheu os ombros entre o enfado e a saturação e lembrou-lhe que, de caminho, passasse pela Damaia lá por casa do sogro e pedisse vinte “éros” para que não lhe cortassem o gás no dia seguinte.
De vez em quando, apesar do esforço, não se furtava à visita de médico que o passe social lhe permitia. Lá ia ele, com o saquinho da Zara com o tupperware dos restos do almoço, suportar, no olhar, o peso da reprovação pelo plasma, o telemóvel, o aparelho dos dentes do miúdo, mais o gajo do banco a ligar por causa do buraco na conta,  cratera sem fundo, à sombra de juros, mora e comissões que lhe reduzira o orçamento à condição de destroço. Achava que chegara a hora de contrariar o destino, os anos de ócio e imprevidência.
O carro transpirava fadiga dos metais na descida da rampa dos cabos de Ávila, num esforço digno de registo no manual de mecânica, rangendo fissuras e desequilíbrios quase a chegar aos oitenta com o vento pelas costas. O plano fora delineado pelo caminho abrindo garrafas a eito, sem dó nem piedade: tomar de assalto a RTP anunciando aos microfones a revolução e tomada de reféns se fosse preciso.
Roncavam, a sono solto à entrada dos emissores quando, ao amanhecer, sentiram umas pancadas secas e vigorosas no vidro do condutor e um olhar farejador e inquisitorial ornamentado com uma farda da Securitas a demandar sobre o que se passava ali.
A manivela a baixar o vidro que só desceu pela metade e o Gongas, ainda estremunhado, a esticar o pescocinho fino e esguio e a inclinar, com sacrifício, a cabeça pondo a testa de fora e, de olhos semi-cerrados, a articular aos bochechos que vinham fazer uma revolução…
Pois vão lá revolucionar para outro lado!! Andor que isto aqui não é a Santa Casa!!
O Gongas olhou para os companheiros esbugalhados, as grades de mines vazias e a vontade aflitiva de mudar a água às azeitonas e aceitou, e agradeceu, com um aceno reverencial, o empurrãozinho para ajudar o Fiat a pegar decidindo, naquele momento, abortar o golpe de estado. Na descida do Monsanto deu uma olhadela de soslaio ao ponteiro da gasolina a cavalgar a reserva e viu que ainda ia muito a tempo de meter para a IC19…
O sol já despontava e o trânsito começava a engrossar. Se se despachasse, ainda o apanhava, era só suportar o tal olhar, um saltinho à Damaia e… sacar vinte euros ao velho para não lhe cortarem o gás…



terça-feira, 28 de maio de 2013

PENSO, LOGO EXÍLIO

Imagem retirada da net
A tia costumava dizer que ele era assim, meio avariado, desde pequenino, que trazia lá dentro, algum botão escangalhado. E dizia-o com ar blasée enquanto distraía a vista cansada nas montras da Joframa, na rua dos Fanqueiros, pejada de manequins amarelos e mortiços, aqui e ali esfolados e com mossas na tinta. Era o tempo em que o universo era feito de legos, livros e coisas boas e em que todos queriam ser alguma coisa: polícia, bombeiro ou astronauta. Ele não queria ser nada. Imaginava-se apenas uma espécie de Vasco da Gama ou Sandokan a descobrir o remédio para tratar a doença da mãe, o absurdo estéril dos  achaques e maleitas que a faziam sofrer de fraqueza e   vomitar entre a casa de banho e o quarto de janelas fechadas, no escuro, a debitar pedidos e queixumes. Doía a cabeça, os rins, as costas, a barriga. É dos nervos dizia o médico É dor de alma  diziam as vizinhas e ele ficava horas , parado, a olhar para o estuque encardido  onde um fiosinho de humidade deixara marcas desde o interruptor até ao rodapé à procura, ali, de algum sinal da existência de Deus. A tia viera da terra para Lisboa  para dar uma ajudinha, achava que ele não tinha tino, que lho levara algum personagem dos livros que lia em demasia, quase tão mau como apanhar muito sol naquela moleirinha cheia de sonhos, mas ele sabia que  ela era afiambrada à socapa pelo Arnaldo do terceiro andar, chauffeur de carro de praça, Merecedes-Benz 200 D, arraçado de carro de combate , polido, lustroso, porta estandarte do belenenses  com imagem fluorescente da nossa senhora no tabelier.  Era nesses momentos que ele aproveitava para ir à caixinha, por trás do jarrão chinês da dinastia Ming que a mãe comprara quando ainda tinha disposição e sorriso, ao aldrabão do Mota da casa de móveis em segunda mão  que afiançava ser genuíno, que de qualidade e velharias percebia ele e tirar umas moedas para ir à mercearia comprar pastilhas e recordar com a Tininha as férias do verão anterior, em Santo André, com o avô a fazer vinho americano às escondidas porque era proibido desde o tempo do Salazar, a barrar manteiga nos dois lados das bolachas Maria porque era guloso e porque as lambia até derreter por não ter dentes.O amor com interrupções, as brincadeiras, as asneiras, muitas, mais que pedras no caminho de Pessoa. Esse Pessoa a tornar-se calhau imenso, estigma melancólico a atravessar-se com pontualidade arreliadora na alma lusa. As corridas para a aloja com cheiro a gasól, do motor de tirar água do poço, porque ela tinha medo dos javalis, cobras e ratos do campo. Trocavam carícias no meio das sacas de batatas  e a avó a espantá-los  com as mãos   ásperas, para ajudarem apanhar os marmelos que começavam a cair de maduros e faziam estrondo ao esborrachar-se nos torrões duros de terra seca,   a avó a gritar porque se esventravam e ficavam sem serventia. O mesmo som que ouviria mais tarde, quando aquele  alferes miliciano que cumprira tropa no Uíge  e que fora da Securitas e depois entrara para um banco e tinha uma mulher  hospedeira, muito bonita e, por sinal, muito simpáticos e se mandou da varanda descascada de um sétimo andar em Odivelas e ele a ouvir a avó gritar que eles se esventravam e ficavam sem serventia e a perceber que a morte tinha cheiro e que no fim ficava um silêncio absoluto, vereda estreita entre o pensamento e a fé, espécie de exílio onde o corpo resgatava a memória e o amor, que se tornava mais forte não pelo espaço ocupado no coração, mas pelo vazio que ficava quando partia…