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terça-feira, 19 de dezembro de 2023

CAOS

Imagem: Pinterest 


Nos tempos modernos parece existir um prazo de validade social para o luto e o conforto, ninguém quer lembrar coisas más, com medo que se repitam ou se peguem ou venham a agitar o equilíbrio, já de si precário, das suas vidas, mas por vezes o passado trás um futuro com o qual não se contava e que pode vir a submeter o caos ao tempo ou vice-versa



quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O PASSADO AO COLO

"Chiado molhado" - Fotografia de Isabel Garcia Pereira

Às vezes trazia o passado ao colo, porto seguro onde se refugiava amiúde, a declinar escolhas e consequências, presa fácil da infância, dos natais a morrer de tédio, sempre passados na terra, a aborrecê-lo sobremaneira por não poder ver o Espaço 1999, das velhas da aldeia, de buço rijo a picar-lhe a cara, à chegada, com os beijinhos e a cantilena pronta e rotineira de que já estava um home!, das moedinhas de vinte e cinco tostões e dos biscoitos rançosos guardados em frascos de Tofina desde a consoada anterior, que insistiam em lhe oferecer, do sacrifício supremo de ter que assistir às missas só atenuado pela perspectiva de se sentar ao lado das raparigas quando o pároco, a ler as escrituras de voz sibilante lhes ordenava que se cumprimentassem na paz de Cristo e ele, finório, a ajeitar os beiços para o ósculo oportunista e elas, com pudor exagerado, a estenderem-lhe a mão com o olhar cabisbaixo, das visitas de estudo da escola, das excursões ao Mosteiro da Batalha, do arco em ogiva, do postalinho com a imagem do túmulo do soldado desconhecido, da florzinha para a mãe e outra para a tia, ainda a viver lá em casa, a tomar-se de amores por um mancebo bem apessoado a cumprir tropa em Moçambique e ela que queimava pestanas à noite e massacrava as falangetas, a tirar a quarta classe de adultos e o curso de dactilografia e estenografia a escrever cartas comerciais em teclado HCESAR, a casar por procuração e apanhar boleia no Infante Dom Henrique para Lourenço Marques, para trabalhar nos escritórios da Lusalite com um patrão que era muito boa pessoa não desfazendo
No verão, trazia-lhe cajus, roupas e lembranças que davam nos aviões da TAP.  E ele guardava com zelo embevecido os tarecos, cromos, lembranças, réstias de sol, aroma de noites quentes, dramas,  gargalhadas,  palavras… um pouco de mim, de ti, do pretérito imperfeito em que éramos nós…detalhes, marcas, cicatrizes, sulcos na pele em forma de memória, com a mágoa a fazer de conta que se ia embora deixando espaço aberto para as coisas doces, como quando  pedia ao vento para não fazer barulho para não acordar os castanheiros que dormiam de pé, tranquilos, nas terras frente ao quarto onde a mãe descansava da dor de cabeça. Torpor de que só despertava quando a menina Isabelinha da contabilidade, ao almoço, falava do seu problema do maxilar com pouca massa óssea para suportar implantes e da colega de secretária, indiferente, passando creme pelas mãos queixando-se do marido que ressonava que parecia um motor de motocicleta a quatro tempos…
A chuva a cair, miudinha, na noite baça e ele a regressar à realidade… ou a esvair-se no sonho, até ao ponto em que a felicidade se tornava no instante em que o corpo dela e a alma dele ficavam do mesmo tamanho percebendo, então, que o amor era uma coincidência no caminho, entre dois,  a dissimular a liberdade ou a falta dela…